mardi 10 juillet 2007

FIM


57. Processo
Segundo o Budismo Tibetano existem três práticas fundamentais para morrer: permanecer na natureza da mente, praticar o Phowa (transferência de consciência) e confiar nos seres iluminados. Os grandes mestres do Dzogchen morrem como uma criança recém-nascida. Os praticantes de nível médio que possuem melhor capacidade morrem como mendigos na rua. Ninguém os perturba nem os incomoda. Os de capacidade média morrem como animais selvagens. Vão para um canto da selva e lá esperam.
Os ensinamentos tântricos explicam que na morte, nossa consciência navega um vento e assim necessita de um canal para deixar o corpo, uma espécie de abertura. Existiriam nove aberturas e cada uma relaciona-se com o reino onde acontecerá o próximo renascimento. E essa liberação no momento da morte consistiria, de uma forma resumida, em perceber a natureza de Luz e não "cair" novamente no ciclo de renascimento.
No exato momento da morte nossa construção conhecida como eu despedaça-se de forma drástica. Então, um nível sutil de consciência "continua" e atravessa os chamados bardos, e tudo o que é "percebido" nesses bardos, nesses estados específicos, todas as divindades pacíficas e iradas, todos os deuses e demônios, todos os deleites e sofrimentos são "criados" unicamente por nós mesmos.
Por isso que na morte, se conseguirmos manter uma realização estável da natureza da mente por um só instante, purificaríamo-nos. Se conseguíssemos manter essa realização - percebendo a vastidão da pureza primordial da natureza da mente - atingiríamos a iluminação.
Divide-se em dois processos esse morrer: um externo, onde os sentidos e os elementos dissolvem-se; e um interno, onde os estados e pensamentos densos e sutis dissipam-se. A dissolução desses processos dá-se de forma que grupos de aspectos interrelacionados (de nosso corpo e mente) desintegram-se simultaneamente.
Quando os ventos dissolvem-se as funções corpóreas e os sentidos falham, os chakras entram em pane e em seqüência os elementos se dissolvem - do mais denso ao mais sutil. Cada estágio possui uma contrapartida e um efeito físico e psicológico que são sinais físicos externos e experiências internas.
E quando os sentidos não mais funcionam, segundo Sogyal Rinpoche, começa a primeira parte do processo de dissolução. As próximas fases dividem-se em quatro. É a dissolução dos elementos: terra, perde-se a força corporal com a exaustão de nossa energia. Nossa mente delira e se agita e logo caímos no sono. O sinal secreto que "aparece" na mente é uma visão de uma miragem tremeluzente; água, os fluidos não são mais controlados e "sente-se" muita sede. As sensações do corpo são reduzidas e existe uma alternância entre opostos, tais como, muito calor e muito frio, muita dor e muito prazer. Nossa mente torna-se enevoada e o sinal secreto é o aparecimento de uma "neblina"; fogo, o calor corporal começa a dissipar - a partir dos pés e das mãos e por último o do coração - e nossa mente alterna-se entre confusão e claridade. O sinal secreto são centelhas que dançam sobre um fogo aberto; ar, a respiração torna-se quase impossível. O agregado do intelecto se vai e a mente não mais percebe o mundo exterior. Vem-se as alucinações e as visões que corresponderão com os tipos de energias que nos conectamos e produzimos durante a vida - boas ou ruins. O sinal secreto é uma tocha incandescente com um fulgor vermelho. A inspiração torna-se rasa e a expiração longa. O sangue então penetre no canal da vida no nosso coração, três gotas de sangue juntam-se e originam as três exalações finais. Então, de súbito paramos de respirar. Embora ainda haja um leve calor no coração clinicamente estamos mortos.
Contudo o processo ainda continua. Dá-se então o início da dissolução interna onde as emoções densas e sutis dissolvem-se. As duas essências básicas, do alto da cabeça (branca) e abaixo do umbigo (vermelha) evoluem então para o próximo passo. A branca desce pelo canal central até o coração, onde dissolvem os pensamentos resultantes da raiva, a vermelha sobe e dissolvem-se os pensamentos relacionados com o desejo.
Do encontro das duas essências no coração, os sete estados de pensamentos resultantes da ilusão e da ignorância terminam. Surge então a Clara Luz da Morte - na medida que nos tornamos novamente "conscientes". A percepção dessa Clara Luz como tal, possibilitaria a "quebra" do ciclo de existência.
Para Sogyal Rinpoche a percepção dessa Luminosidade é a maior possibilidade para a libertação. Mas o que normalmente acontece é que tendemos a reagir a partir de nossas "velhas" percepções - pois embora as emoções negativas tenham se dissolvido, os "hábitos", os padrões anteriores, ainda permanecem. E essa "nossa" mente ordinária não se reconhece na Clara Luz e "foge" com medo.
Sogyal Rinpoche compara a nossa mente ordinária a uma porta de vidro que impede que caminhemos rumo à natureza de nossa mente. E alguns mestres aconselham aos praticantes de meditação a não vir a confundir a experiência da base da mente ordinária com a verdadeira natureza da mente. Pois seria semelhante a olhar para o espaço de dentro de uma caixa de vidro e olhar para ao espaço do lado de fora da caixa. É esse "vidro" que retém as velhas percepções, os velhos hábitos, os padrões anteriores.
Para um praticante, a Luminosidade Base dura enquanto ele puder "repousar" nela. Mas para a maioria das pessoas ela dura um piscar de olhos. E por não conseguir reconhecer essa Luminosidade Base, por não conseguir "suportá-la", a maioria das pessoas mergulha numa inconsciência que pode durar até três dias e meio. Então, finalmente, a consciência deixa o corpo.
Somente um praticante experiente conseguirá manter plena consciência e se fundir com a Luminosidade Base (atingindo assim a iluminação) quando esta emergir da morte. Normalmente esse ponto escapa e segue-se o próximo bardo, o bardo luminoso do dharmata. "A verdade nua e incondicionada." - ensina Sogyal Rinpoche.
Esse bardo divide-se em quatro fases que apresentam novas possibilidades de liberação. Luminosidade é a primeira fase - o espaço então dissolve-se na luminosidade. O nosso "mundo" conhecido funde-se numa paisagem de luz que tudo abarca. União é a segunda fase - raios e cores individuais integram-se em "bolas" de luz (tiklé) de diferentes tamanhos. Essa fase também é conhecida como luminosidade dissolvendo-se na união. A luminosidade manifesta-se tais como budas e deidades de diferentes tamanhos, cores e formas, onde de seus "corações" saem raios finos de luz e que se ligam ao "nosso" coração. Esferas de luz girando aumentam de tamanho e tudo isso dissolve-se em "você". A terceira fase é a Sabedoria - caso novamente a percepção fracasse em reconhecer e conseguir a estabilidade nas etapas anteriores, segue-se a chamada união dissolvendo-se na sabedoria. A próxima chama-se Presença Espontânea - a fase final desse bardo. Somente um praticante qualificado poderá experiênciar essas fases e percepções.
O próximo bardo é o Bardo do Vir-a-Ser. E como não conseguimos reconhecer a Luminosidade Base e o Bardo do Dharmata, todos os nossos "padrões" adormecidos são novamente ativados. E nesse bardo dá-se no período entre esse "redespertar" e nossa nova vida. Se no bardo anterior tínhamos um corpo de luz agora temos um corpo mental. Esse é o chamado bardo karmico pois somos atraídos à esferas que relacionam-se com os tipos de energias que acessamos anteriormente. Dá-se então um processo inverso ao da dissolução na morte. Os ventos "surgem" trazendo os estados de pensamento relacionados com a ignorância, o desejo e a raiva.
O Budismo Tibetano ensina que esse corpo mental possui todos os seus sentidos, além de uma consciência de percepção altamente clara. É dotado de uma espécie de capacidade de perceber o pensamento "alheio". Não consegue manter-se imóvel e consegue "ver" a tridimensionalidade - mas como uma massa turva. Pois ainda não possui as gotas femininas e masculinas para ver claramente "através" do sol e da lua. Pode ver os seres de outro bardo, e somente os seres vivos clarividentes podem percebê-los.
Sentirá fome por já possuir os cinco elementos, "vive" de odores e "tira" alimentos de oferendas. Porém só serão beneficiados caso as oferendas sejam em seu "nome". A mente perpetua os padrões e hábitos anteriores e não percebemos que estamos mortos. Tentamos então nos "comunicar" com a esfera dos vivos. Vem a raiva e a frustração. Quanto mais apegado a "matéria" mais dificuldade haverá para resolver essa questão.
As experiências da vida passada são revistas e reexaminadas. E a cada sete dias voltamos a experiênciar o tipo de morte que tivemos com todas as suas impressões. Seguimos como se estivéssemos num sonho, ou melhor, num pesadelo. Ansiamos por um corpo físico mas fracassamos ao tentar "escolhê-lo". Isso ficará a cargo do nosso karma. E nesse "julgamento" somos o juiz, os fatos, as provas, as defesas, as testemunhas, os jurados, o promotor, o advogado de defesa e o réu.
Diferentemente do estado do dharmata, nesse bardo os estados transcendentes, os reinos búdicos, não aparecem "espontaneamente". Teremos que nos esforçar para nos lembrar deles caso queiramos aproveitar essa última possibilidade de iluminação antes de cairmos novamente na roda. Mas basta uma única lembrança de uma prática, que o poder da mente nesse bardo nos "leva" instantaneamente à esfera correspondente.
A ânsia cada vez maior por um corpo material é uma indicação de que o "nascimento" novo se realizará. Luzes de cores variadas começaram a se manifestar e dependendo do seu karma você será "sugado" para dentro de uma delas. E esse nascimento futuro estará diretamente ligado ao seu nível de desejo, de raiva e de ignorância. Caso você consiga direcionar-se e ser direcionado para um novo nascimento humano, fecha-se o círculo. Começa então a vida e dissolve-se a Luminosidade de Base.

56. E temos a morte.
Talvez a relação que o ocidente - em particular a leitura científica do mesmo - tem com a morte, deva-se a sua inclinação de ver a matéria como algo sem... vida. De perceber a existência humana somente como uma construção psicobiológica. Onde o início, meio e fim são infância, juventude, maturidade e velhice.
Porém, para todos nós a morte tem um grande impacto. Um impacto que pode até ser transformador. E para o Tantra a morte é um espelho no qual a significação da vida se reflete. Milarepa dizia que sua religião era viver e morrer sem arrependimento. Sogyal Rinpoche afirma que através da contemplação constante e praticando o desprendimento, descobrimos em nós mesmos "alguma coisa" que não podemos nomear, descrever ou conceituar, "algo" que começamos a perceber que está além de todas as mudanças e mortes do mundo.
Segundo o Tantra existe um tipo de energia, um tipo de luz que se encontra "dentro" de nós e que é "libertada" quando o corpo e os níveis mais densos da mente morrem. Então o som, a cor e a luz de nossa verdadeira natureza brotam. A própria ciência que nega a morte contudo já reconhece que a matéria, num certo sentido, é luz condensada a partir de determinados padrões. E por isso que a percepção da nossa natureza ilusória é uma realização profunda e indispensável para nos ajudar nesse processo. Pois a vida e a morte encontram-se em nossa própria mente.
A partir desse ponto podemos indagar por que necessitamos "nos purificar" se a nossa natureza básica é luminosa, se a nossa natureza básica já é pura? Porque nós mesmos criamos nossas emoções negativas por estarmos presos nessa tridimensionalidade e a partir dela, influenciados pela ignorância, pela raiva e pelo medo.
Essa emoções negativas acumulam-se no chamado sistema psicofísico, composto pelos canais sutis que concentram-se nos centros de energias do corpo - afirma o Tantra do Dzogchen. Segundo o tantrismo aprender a morrer é aprender a viver e aprender a agir, e o que experimentamos na morte não passa de nosso próprio pensamento conceitual.

55. Comida
De forma mais genérica podemos afirmar que para o Tantra existem três possibilidades de se iluminar: pelo sexo, pelo sono e pela morte. Através da sexualidade, através da energia sexual, uma série de insights podem ser obtidos, uma série de perguntas são respondidas, energias são transmutadas, conceitos podem ser percebidos, portas são abertas e o tempo pode ser eliminado - eliminando assim o Ego por conseqüência. Podemos então entrar por essas portas e realizar então a nossa mente de sabedoria. Através do sono consciente, o buscador pode entrar em contato direto com todas as estruturas que o compõem através do yoga do sono. E pode também trabalhá-las, entendendo assim a sua natureza básica - o vazio. Pois quando adormecemos as camadas mais densas da consciência se dissolvem e gradualmente a nossa natureza absoluta flui e desnuda-se brevemente a nossa Luminosidade Base. O momento a seguir é tão sutil que a maioria de nós não o "percebe". É o estado onde a ciência afirma que não há sonhos. Então em seguida a mente novamente acorda e torna-se ativa num mundo onírico. Temos então um corpo onírico e passamos por experiências oníricas compostas e criadas a partir de nossas energias, hábitos e atividades em nosso estado de vigília. Essas experiências são "sólidas" e reais e a maioria de nós não percebe que está sonhando. O iniciado que consiga trabalhar-se nesse estado onírico pode vir a perceber a luminosidade base e utilizar esse conhecimento na hora da morte para iluminar-se.

54. O Casulo
A raça humana mesmo após passado um milhão de anos, ainda se comporta a partir do básico esquema atacar ou fugir. Sob certos aspectos a nossa "evolução" - como já vimos - talvez tenha complicado ainda mais essa questão; pois o pensamento atrelou-se a esse esquema básico. E esses instintos de sobrevivência passaram a se orientar e se apoiar no pensamento. O homem começou então a justificar esse atacar ou esse fugir. Infelizmente, mais ainda esse atacar.
Essa questão tem ramificações que se estendem até por regiões que supostamente foram criadas para resolver esse dilema. Infelizmente o deus é amor cristão não foi suficiente, e milhões de mulheres morreram na Europa condenadas por bruxaria. Quando na verdade elas apenas tinham uma visão diferente de mundo.
Para o tantrismo a única maneira de se resolver esse problema é uma completa reorganização do que conhecemos como realidade. Pois a mesma mente que criou o problema não será capaz de resolvê-lo. Esse novo ethos deve partir de uma percepção pura, e a partir dessa percepção haverá ação, que poderá então ser "sustentada" pela racionalidade.
A consciência então não passaria da percepção de uma claridade. Nagarjuna em seu tratado fundamental explicou que devido ao fato de não existirem por essência todas as coisas não passam de... designação dependente.
Todavia essa racionalidade que poderá então sustentar essa percepção pura é uma racionalidade de uma outra ordem. É apenas a percepção da ordem. Não uma ordem mecânica ou lógica. É uma racionalidade onde não há regras, é autogerada; pois é a conseqüência de um infinito atual, é conseqüência da percepção pura, e finalmente, da ação.
Um coro de vozes se levantará e aclamará NÃO EXISTE ESSE NEGÓCIO DE PERCEPÇÃO PURA! Mas não podemos afirmar isso categoricamente. A ciência que se ocupa da investigação desse cérebro e de suas possibilidades, admite que menos de dez por cento do mesmo, ou menos ainda, é que foi estudado, investigado. Existiriam inclusive mais neurônios no nosso cérebro - afirmam os cientistas - do que as estrelas conhecidas!
Por que então não poderia haver no cérebro determinadas áreas que trabalhassem questões sem conteúdo? Assim como existem áreas específicas relacionadas com a cognição, a motricidade, o prazer, entre outras, poderia haver uma que fosse além do verbo, da forma, do símbolo e de alguma maneira desconhecida captasse Isso, trabalhasse Isso, mas que até então não tenha sido "acordada".
E se a partir de eletrodos nós podemos determinar se uma pessoa que dorme sonha ou não, é porque esse sonho, esse pensamento, essa atividade desse conteúdo, "manifesta-se" através de sinais elétricos captados pelo eletrodo. Contudo, podemos simplesmente ainda não ter chegado num nível tecnológico, se é que chegaremos um dia a ele, onde existe uma espécie de "sensor" para identificar aquilo que estamos chamando de percepção pura.
A psicologia transpessoal se abre a necessidade de que se utilizem novos enfoques que permitam acessos aos níveis mais profundos da psique sem dependerem da linguagem. Pois muito do que experienciamos em nossa mente ocorreu antes da capacidade verbal vir a tona, por exemplo, somos "não-verbais" quando ainda estamos no útero materno, e continuamos até a chamada primeira etapa da infância. Embora nesses períodos desenvolvamos qualidades importantes e percebemos o mundo a partir de um ponto ainda não vasculhado pela ciência "oficial".
Dizendo de outra maneira o problema de perceber ou não o que está se chamando de percepção pura, liga-se à questão das relações que estabeleço, e nas quais me incluo, onde esse processo se dá. Temos finalmente o problema onde aquilo que possui causa e efeito, o pensamento por exemplo, pode ser percebido, analisado, dentro dessa percepção - e dessa ciência - temporal, que atrela-se a essa dualidade, a essa terceira lei de Newton. Contudo para o Tantra existe um além, que encontra-se além desse processo.
Várias pessoas através dos séculos tem provado a possibilidade de se ir além: Buda, Jesus, e vários outros mestres, entraram em contato com essa numinosidade, com esse sagrado, com essa percepção pura. E no Tantra existem vários métodos para isso. A grande dificuldade é que nos percebemos muito... "impuros".
Mas essa reorganização não depende do tempo nem do espaço, pois ela se encontra na esfera do que chamamos de quadridimensionalidade. Essa percepção pura dissipa esse centro fantasma, esse núcleo enraizado no lutar ou fugir.
Chegamos num ponto interessante: sou um homem normal, comum, com todos os meus instintos básicos de pulsões, prazer, dor, recompensa e castigo. Ao reler o que acabei de escrever percebo uma certa lógica. Faz sentido num nível intelectual. Mas se acabei de afirmar que a mesma mente que cria o problema não pode resolvê-lo, como isso se dá?
Talvez isso possa ser explicado por todo o meu processo de vida, que passa pelo Tantra. Tudo aquilo que mais tarde eu vim a "saber" que era conhecido como Tantra eu já processava, sem sabê-lo, num determinado grau. Talvez então eu já tenha emburrecido o bastante para perceber essas questões. Talvez eu já tenha conseguido me desfazer de uma boa parte de meu excesso de bagagem para poder correr nu na relva... E isso se dá com qualquer pessoa. Não se trata de forma alguma de haver um "mestre" desse lado de cá do livro. Existe sim uma pessoa interessada em fazer perguntas e que percebe dentro do Tantra uma série de maneiras de se processar essas perguntas.
Mas não existe uma questão de tempo envolvendo essa fato. É agora. É aqui. Contudo, achamos que não temos energia o suficiente para tal empreitada. Achamos que não possuímos a capacidade de percebê-lo rapidamente; mas isso é imediato, e não apenas algo que se pratique e que se alcance. Vinculamos as perguntas ao tempo. Ou então nos interessamos mais em obter "respostas". Não tenho a capacidade - costumamos dizer - nem possuo o senso de urgência, de necessidade imediata. Tudo está contra: a família, a sociedade, minha lucidez. Tudo. E o que fazer, tornar-se um monge? Não necessariamente, pois tornar-se um monge pode ser a mesma coisa que tornar-se qualquer outra coisa.
"Enquanto o centro estiver criando a escuridão, e o pensamento estiver operando nele, haverá o problema, e a sociedade será como é agora. Para nos afastarmos disso, temos de ter a visão intuitiva. A visão intuitiva só pode ocorrer quando houver um lampejo, uma luz repentina, que elimine não apenas a escuridão como também o seu criador" - diz Krishnamurti.
A imagem da lua acariciando suavemente as formas e dissipando a escuridão é uma bela imagem tântrica. E através da respiração direcionada vamos percebendo o que se dá. Assim como através de uma meditação analítica vamos percebendo aquele que pensa, discrimina e age a partir do lutar e fugir.
E basicamente existe aquele tipo que quer sair dessa roda, mas não faz muita coisa a respeito; e aquele que não acha que exista "roda" alguma, pois nem sequer consegue perceber a sua existência. Aquele primeiro que deseja sair mas não consegue reunir "forças" para tal, quando chega uma determinada ocasião em que se defronta com o lutar ou fugir, quando sente a raiva ou o prazer, automaticamente é levado por essas energias. O outro nem saber que é levado sabe. Um terceiro tipo é aquele que começa a perceber essa outra pessoa. É aquele que começa a observar esses processos. Embora de início não possa fazer nada a respeito, consegue atentar de onde surgem, como se dão, para onde vão essas energias.
E podemos chegar ao início desse processo? Ao início desse orientar-se a partir do lutar ou fugir - mesmo de uma forma sofisticada e complexa como fazemos no século XXI? Dar-se-ia esse processo a partir da transformação da célula totipotente, ou seja, aquela capaz de se diferenciar em qualquer tipo de célula e diferenciar os tipos celulares variados, como as células musculares, nervosas, entre outras? Haveria uma construção de mundo desse nível que se basearia somente no biológico, no celular? Mas mesmo assim qual seria a sua origem? Ou ele estaria "adormecido" esperando o empurrão ambiental necessário?
O que podemos saber com certeza é que todos os organismos procuram o prazer e fogem da dor. Todos buscamos a felicidade, a harmonia, a paz. O corpo de alguém estressado, com medo, deprimido, produz vários tipos de enfermidades. Físicas e mentais. O corpo de alguém feliz, em harmonia com o mundo que o cerca, produz bem estar e saúde. Todos os órgãos funcionam melhor e a vida como um todo parece ter um sentido em uma pessoa feliz.
Mas se isso é assim porque a nossa espécie progrediu, e caminha, a partir do esquema instintivo básico lutar ou fugir? Esquema que desencadeia desconfiança no lugar de amor, ódio no lugar de paz?
Porque, embora fisicamente a dor desequilibre o corpo físico, em outros níveis ela poderá alimentar certos pensamentos e certas formas, que agirão como reforçadores dessa mesma dor. Causar dor ou sentir dor, possui num nível relativo uma ligação primária com o inverso. E essa energia, que nossos pensamentos condensam e transformam em "heroísmo", "bravura" e "controle", cada vez mais se utiliza desse instinto básico lutar ou fugir para se "alimentar" e gerar mais dor, estresse e medo. O principal elo entre essa energia, essa "entidade", esse prazer no mal e o processo humano é o chamado Ego.
Esse Ego, que coloco com e maiúsculo para diferenciar do ego enquanto construção teórica de linha psicológica ou psicanalista, é o que divide. É o tal do Anti-Cristo. É o que cerca, o que explica; tem de explicar pois senão o controle é perdido, tem que explicar para poder assim manipular. Esse Ego declara que nada existe além dele e mesmo para aqueles que duvidam disso de alguma forma, ele cria ícones a sua imagem e semelhança. Ele só poder existir a partir de uma cristalização, a partir do momento em que não mais se perceba que se faz parte de um processo. É a gota que se acha mais especial do que o oceano.
E qualquer construção que exista que possa ameaçá-lo, ele tenta controlar. A sexualidade por exemplo: ou ele a controla sufocando a sua principal essência, ou ele a patologisa. Pois para esse Ego não pode haver um derreter-se, um fluir, um processo. Para ele só pode existir um EU gozo. Para ele não há um eu fluo, só há um EU fodo. Para esse Ego não há uma dança, para ele só há uma marcha. Não há uma troca mas uma conquista... de preferência, à força. E é esse Ego o principal "alvo" das técnicas tântricas.
E o processo é tão enraizado que mesmo ao querermos viver num estado sem divisões, sem esse Ego, estamos partindo Dele mesmo para fazer com que isso ocorra. Mas não há divisão alguma. O fluxo que passa através de mim e que te percorre e te faz criar imagens enquanto lê essas palavras é um só. Assim como realmente somos um só.
Mas se realmente somos um só porque percebemos essa divisão? Voltamos a questão da origem. Voltamos ao lutar ou fugir básicos. Que dentro do nosso processo de maturação enquanto espécie foi válido. Graças a ele é que não viramos o jantar de algum predador e sumimos do mapa. Contudo, quando isso se prolongou e quando foi "completado" com o pensar, a partir exclusivamente do tempo, é que gerou o quadro todo que estamos questionando e tentando entender.
Então essa energia gerada pela ignorância, pela raiva e pelo medo, oriunda do esquema básico lutar ou fugir, foi "aproveitada" pelo pensamento inicial, por esse pré-Ego, e transformou-se numa espécie de gozo negro, que por sua vez alimentou e gerou esse Ego, essa divisão, esse controle. E vem desde então se processando e utilizando (e sendo utilizado) pelo Ego.
O Tantra utiliza o próprio veneno gerado por esse Ego para perceber a sua ausência. Utiliza todas as energias possíveis para dar um curto circuito nesse processo. E isso é uma tarefa hercúlea pois toda a nossa sociedade contemporânea está mergulhada nesse Ego. É o mais rápido, o melhor, o mais bonito, o mais luxuoso, o mais gostoso, o mais alegre... e até o mais humilde. Finalmente esse Ego transformou quase totalmente esse processo chamado Vida num produto a ser comprado pela Internet com dinheiro virtual de plástico.
E como o tantrismo tenta fazer isso? Percebendo aquilo que dá suporte a esse Ego, percebendo a mente ordinária. Percebendo que a partir dela é que são criadas todas as noções de certo e errado, esquerda e direita, sim e não, lutar ou fugir, e percebendo que essas noções não possuem concretude a não ser a partir desse Ego.
E quando o Tantra afirma que o essencial vai além do intelecto, quando afirma que o sabor só poderá ser percebido por aquele que se transformar no sabor, está afirmando esse eco que se propaga até os nossos dias, mas que teve início há dois mil, ou dois mil e quinhentos anos, ou há dez mil anos, e que diz que Deus é Amor, que explica a interdependência de tudo a partir da noção de um Vazio, que afirma que existe um universo num grão de areia; esse eco se propaga até hoje não como uma pregação, mas como uma vibração. Como uma luz. Não é meramente uma questão de opinião...é uma questão de percepção.
E embora eu saiba que de certa forma existe uma divisão conceitual entre mim e você, ao me sintonizar com você... essa ilusão se desfaz. Isso pode ser realizado a partir de vários níveis. De um abraço amigo até a interpenetração de dois corpos num abraço sexual tântrico.
Então, seja em qual nível eu me encontre, eu observarei, escutarei e participarei de todos os jogos dessa roda, desse samsara, dessa vida; atuarei a partir dessa ilusão, a partir desse jogo, cujo o protagonista é o Ego e cujo o tabuleiro é a mente. Não vou lutar contra nada disso, vou apenas perceber que tudo isso é simplesmente criado... por mim. Pois ai eu respondo a pergunta óbvia: a partir de qual conhecimento que eu venho e questiono Todo o conhecimento? E com que autoridade faço isso? Eu não questiono, eu percebo. Sentindo assim que samsara é nirvana. Curiosamente o termo tibetano para nirvana é nyang-de - além da mágoa.
E isso de dizer que samsara e nirvana não estão divididos é a mesma coisa que dizer que não existe nem uma coisa nem outra. Não existe divisão mas existe fluxo, movimento. Um movimento para além dessa quadridimensionalidade. As tradições tântricas postulam que nesse movimento não há um fim nem um começo. Mas podemos dizer: o que é que morre quando o indivíduo morre? Morre esse movimento ou o quê? Se a pessoa consegue captar, perceber, o que significa essa não divisão, se a pessoa consegue perceber esse fluxo, então isso não é importante. Então a morte não possui mais significado. O que existe então é apenas o término do corpo. O que sobre é apenas comida.
E por isso mesmo o tântrico é chamado de duas vezes nascido; assim como esse renascer possui uma importância muito grande dentro de todas as escolas de mistério. Frente a eternidade que se apresenta nesse aqui e agora a morte deixa de ter poder. A morte torna-se apenas uma questão de negligência. Contudo alguém que dirá que é imortal estará sendo infantil. Diferente de alguém que poderá dizer: sou. E esse sou representaria a morte para esse Ego. Pois ele não mais viria a ser, ele não mais giraria esse carrossel de brinquedo que alguns chamam de vida. A brincadeira para ele acabaria.
Mas voltemos um pouco. Analisamos, refletimos e percebemos a possibilidade de uma "energia" que seria a base de todas as coisas. Contudo se essa existência é a "responsável" por todas as coisas, se ela é "onisciente", por que será que "lá em baixo" do processo todo, naquele pontinho minúsculo desse universo que conhecemos como Terra, o homem deu esse passo errado que estávamos analisando?
Talvez possamos responder que dentro da Criatividade existe a possibilidade do "erro". Que o conceito de falha, que a percepção de "Bem, deve haver um outro meio de eu fazer essa joça funcionar" relaciona-se com um processo contínuo de criação, e possibilidade de erro, que se encontra dentro da própria Criação em si. Que está contido nessa Energia. Nesse Vazio. Como diz Pema Chöndrön "A sabedoria é a base da liberdade e também da confusão". Dentro do cristianismo isso é chamado de livre-arbítrio - mas todas as relações que cercam esse conceito a partir dessa ótica cristã contêm uma estrutura e um resultado completamente diferente do que estamos analisando e percebendo.
Entretanto, temos de ter muito cuidado ao analisarmos essa questão - e é nesse ponto que o Tantra visa quebrar todos os nossos pré-conceitos - pois estaremos quase sempre presos a nossa leitura de mundo. Aristóteles, por exemplo, desenvolveu uma noção parecida com a que estamos vendo até aqui; a que de que o absoluto é a causa de si próprio, noção essa que foi arregimentada por Santo Agostinho, posteriormente, para explicar o Deus católico. Contudo esse mesmo Aristóteles, filho de sua época, também afirmava que as mulheres eram "homens mutilados, incompletos", seres de uma ordem inferior e não totalmente humano.
Por isso o Tantra parte do princípio da necessidade de uma recomeço completo de tudo o que diz respeito ao indivíduo - e esse recomeço tem o seu início na percepção de como está esse mesmo indivíduo. Está muito preso, rijo, travado? É porque... Está com muito medo... porque? E assim por diante. Esse processo se desenrola através da utilização das técnicas necessárias para tal propósito. Assim como esse "recomeço" liga-se a realização e a percepção desse vazio. Pois não é apenas a existência externa que é destituída da verdadeira existência, mas também a mente que percebe os diversos fenômenos relativos, assim todos os fenômenos mentais (tudo que percebemos a partir da noção de tempo) carecem de uma verdadeira existência, ou numa análise mais direta, não existem. Assim como também não existe uma realidade suprema. Mas o vazio não significa simplesmente o nada, significa que os fenômenos não possuem uma existência... em si.
Então dentro de uma perspectiva cósmica a "desordem" no nível humano, no nível tridimensional do tempo e espaço, não é desordem. Anteriormente, foi afirmado que somente com a dissolução do relativo chegaria-se ao absoluto, que somente com a implosão do eu perceberia-se o vazio; agora teremos que perceber que caso esse absoluto, ou esse vazio, também não se dissolvam, ainda estaremos na esfera da causa e conseqüência. Na esfera do Ego.
E isso poderia gerar um problema conceitual de dizer que a "base" desse vazio, desse absoluto, não nasce nem morre. Cairíamos no paradoxo. Mas esse é o caminho! E exatamente onde o intelecto pararia em função dessa parede invisivelmente concreta... o ser continuaria, ou melhor, seria.

53. O Agora
Qual foi a última vez que você sentiu o cheiro da chuva? Ou o cheiro da terra molhada pela chuva; ou mesmo do asfalto molhado pela chuva? Qual foi a última vez que você realmente olhou nos olhos de alguém e percebeu aquela sensação graciosa, inefável? Ou que realmente escutou o que um amigo lhe dizia - sem estar internamente maquinando o que responder a ele ou sem estar preso em seus próprios diálogos internos sem fim? Qual foi a última vez que você sentiu o vento acariciando a sua pele? Ou quando foi que você sentiu pela última vez o gosto daquela sobremesa que você tanto adorava e que hoje continua comendo mais por uma questão de hábito? Onde foi parar esse maravilhar-se, esse encanto? Para onde foi o encanto de apenas correr e gritar por uma praia sentindo a areia fofa massagear a sola de nossos pés, o vento marinho acariciar nosso corpo e desembaraçar nossos cabelos, o murmúrio das ondas nos contando de forma infinita como foi o início de tudo, o calor do sol que nos abraça, como uma mãe abençoando um filho, nos dizendo: toma. Onde foi parar tudo isso?
É nesse aqui e agora perdido que está nossa eternidade abençoada. É nesse grão de areia, que nos passa despercebido, que se encontra o universo. É agora. É aqui. A Impermanência é o vento que move as folhas dessa árvore cósmica. A vida e a morte são ondas nessa praia celestial, lambendo a areia, moldando as rochas, penetrando na terra e subindo aos ares.
É nessa exata respiração que você acaba de "realizar" que está a resposta. Pois o universo também está te respirando mas você não está percebendo. A vida está o tempo todo gritando no seu ouvido Eu estou aqui! Mas você não está escutando. Parece um Tântalo atormentado por desejos eternos em meio ao paraíso. Isso ocorre porque nós ou estamos perdidos em algum ponto lá trás ou estamos perdidos em algum ponto lá na frente.

52. O Rei e o Mendigo.
Eu só amo os que vivem como se estiverem se extinguindo
Porque são eles que atravessam desse para o outro lado.
(Nietzsche)

Mas qual é a essência do Tantra? Manter-se sempre no agora. É diferenciação, desidentificação, transcendência e integração. Mas não há nada de especial nisso; e se para o ego esse “novo” conhecimento pode parecer estranho, especial ou padoradoxal, isso se dá porque o Tantra embora o comporte, está muito além dele.
Podemos ver também o que forma essa essência, como uma série de técnicas para se empregar e trabalhar as energias da atenção e da percepção, entre outras, para ativar determinadas estruturas (características, habilidades, atitudes, poderes) e desativar estruturas indesejadas (medos, recalques, bloqueios). O eco dessa essência é a possibilidade de desenvolver poderes latentes, que se encontram fora das normas sociais (alguns até se opondo a ela), por meio de um mergulho profundo num aqui e agora que busca, enfim, perceber a Consciência como um Todo.
Nas dimensões da Visão, os atributos do Tantra incluiriam a percepção clara da realidade - sem "distorções". Parodiando Blake, poderíamos dizer que o tantrico seria aquele cujas as portas da percepção foram abertas. Trata-se na capacidade de penetrar no mundo e de percebê-lo de acordo como ele é, livre de elementos distorcedores de realidade tais como o desejo, a aversão, a ignorância e o medo.
Os tantrikas, pelo menos aqueles que caminham tendo como referência a compaixão, são motivados pelas chamadas necessidades superiores de compaixão, e tem como objetivo de vida a autorealização e a autotrancendência para ajudar o outro, pois vão além dos desejos egocêntricos comuns tais como: necessidade de posses, competitividade, entre outros. O ponto importante aqui é perceber a não identificação com esses desejos e não o fato de agir a partir deles.
Enfim temos a Impermanência... Esse conceito é por demais importante dentro do sadhana tântrico. Impermanência como percepção de que tudo a nossa volta não possui uma realidade absoluta. Daqui a cem anos todas as pessoas que estão lendo essas palavras, assim como eu, assim como todas as pessoas no planeta terra, estarão mortas. A Vida não é, a Vida é um estar. E a percepção desse fato é importantíssimo.

51. O asceta
Havia um jovem yogue que durante anos realizava o difícil processo de busca através do ascetismo. Certa noite ele percebeu assustado que junto a ele, próximo a um lago, havia uma bela jovem banhando-se nua.
Imediatamente todos os anos de renúncia do desejo não lhe valeram de nada. Seu coração foi tomado pela luxúria e ele se apaixonou pela linda jovem. "Ó magnífica criatura, quem és, e o que faz sozinha nessa floresta? Me deixe presenteá-la, me deixe adorá-la, me deixe compreender e provar da sua essência."
"De que te serviria compreender a minha essência? Você não tem se penitenciado durante todos esses anos, não tem passado fome, não tem se torturado de várias formas possíveis para obter a iluminação? De que te servirias me compreender, me provar, me adorar? Você se desviaria do seu caminho." - disse a jovem enquanto lavava a longa cabeleira negra.
"Por favor, ó linda criatura, me deixe conhecê-la" - implorou o asceta.
"Se queres me conhecer, mergulhe nessa lagoa e experimente a minha essência" - finalmente aceitou a jovem mulher.
O asceta mergulhou imediatamente na lagoa e emergiu como Raquel, a virtuosa, filha do reinado do sul.
Em breve, ao atingir seu esplendor em juventude, ela recebeu do pai o casamento com o filho de outro soberano. Ela então experimentou todas as formas do prazer e do amor, teve filhos e quando seu pai morreu, seu marido assumiu o trono. Anos se passaram e a paz parecia ser eterna no reinado.
Mas devido a uma antiga rixa com o principado do norte seu reinado mergulhou numa terrível guerra. O terrível holocausto final havia deixado um rastro de sangue onde todos os seus amigos, todos os seus parentes, seus filhos e marido, haviam morrido.
Raquel reuniu seus filhos e seu marido numa pira funerária e ateou fogo. Ao ver o crepitar das chamas gritou "Meus filhos, meu marido, todos mortos, para que a minha vida há de servir a partir de agora?" atirando-se nas chamas. Nesse momento Raquel viu-se emergindo das águas do lago como o asceta solitário.
A jovem, que havia acabado de banhar-se esperava-o nas margens enxugando seu belo corpo nu. "Quem é o filho cuja a morte lamenta? Quem é o marido a que chora?" O asceta tomado de confusão e vergonha prostrou-se diante da jovem.
"Essa é a imagem de minha essência. Você provou os meus deleites, adorou minhas belezas, e também sentiu uma de minhas fragrâncias nos corpos mortos e queimados que viu. Nenhum deus pode compreender as minhas profundezas ou conhecer o meu verdadeiro significado."
O asceta prostrado diante da jovem suplicou "Mostre-me mais sobre a sua essência, permita-me que eu aprenda um pouco mais sobre Ti."
"Traga-me um pouco de água para matar minha sede, depois continuaremos a conversar."
O yogue saiu apressadamente rumo ao povoado que havia próximo a floresta para tentar arranjar água para a jovem. Chegando lá bateu na primeira casa que viu pela frente. Veio abrir a porta uma adolescente de beleza incomparável e ele sentiu em seu peito algo que jamais havia sonhado.
"Meu nome é Esther - recebeu a bela adolescente o estranho que batia a sua porta - de onde o senhor vem, está cansado, quer entrar e descansar em minha humilde moradia?"
Meio bêbado de emoção o asceta aceitou o convite e foi recebido alegremente por todos os parentes da adolescente. Esquecendo-se de sua missão o homem permaneceu no povoado em companhia daquelas pessoas maravilhosas. Passado um certo tempo solicitou ao pai da moça a sua mão em casamento. Fato que não foi surpresa para ninguém pois todos já haviam percebido o amor que havia entre ambos.
Casou-se com a moça e veio a ter uma família grande, com três filhos, e a trabalhar na terra, como um lavrador. Depois de onze anos havia se tornado um próspero e adorado comerciante. No décimo segundo ano a estação das chuvas foi extraordinariamente violenta: inundações, alagamentos, colheitas perdidas, e todo o povoado viu-se prestes a padecer submerso frente à eminente inundação.
O ex-asceta juntou sua família e pôs-se a fugir carregando o que podia. Uma mão amparando a esposa, levando na outra dois dos filhos maiores e conduzindo o terceiro sobre os ombros. Ia ás pressas em meio a chuva e a escuridão. Tentava-se equilibrar na lama escorregadia mas a chuva aumentava e ele começava a perder suas forças. Seus filhos choravam, sua mulher gritava, um vento aterrorizante parecia que iria levar a todos.
Tropeçando numa pedra caiu no chão e o filho menor foi-se levado pelas águas. Desesperado soltou-se dos filhos crescidos para tentar agarrá-lo mas já era tarde demais. Ao olhar para trás viu os outros dois afogando-se na violenta correnteza. Não via mais a sua adorada esposa. Desejando morrer deixou-se ser levado pela correnteza e foi jogado inconsciente numa margem em cima de uma rocha. Ao acordar e ver a água lamacenta que tudo cobria, chorou.
"Onde está a água que te pedi?" - disse a jovem enquanto enxugava o belo corpo.
O asceta voltou-se e percebeu sentado junto a bela jovem na beira do rio com um maravilhoso sol os iluminando. Ainda confuso, tentava entender tudo o que havia passado.
"Compreende agora o segredo de minha essência?" - perguntou a jovem.

50. Normas mornas
Um processo meditativo que envolva a sexualidade dentro do tantrismo vai muito além de ritos preestabelecidos, regras determinadas, ou coisas do gênero. É algo que se estabelece e acontece a partir de uma combinação significativa, a partir de um ponto determinado, dentro de uma particularíssima circunstância emocional.
Essa "vivência" tântrica é uma... conseqüência. Uma espécie de produto alquímico do eu com o isso. Onde eu e você, onde eu e o mundo, nos misturamos e nos tornamos únicos. Apesar de tudo o que possa estar ocorrendo.
Pois se há uma pedra no caminho joguemos ela num lago é percebamos a beleza das ondas circulares que se estendem ao infinito. Essa percepção que se estabelece nesse processo é a realidade. É esse agora. E todo esse novo momento que é percebido, todo esse mundo novo que se é visitado não passa do "velho" mundo que conhecíamos, mas que parecia sem graça, meio nebuloso, devido a escuridão. Semelhante a voltar para casa de noite e não localizar o interruptor na parede. Tudo fica meio confuso, tropeçamos em objetos que havíamos deixado no caminho e havíamos esquecido. Mas logo que acendemos a luz... pronto. Fica tudo claro.
É essa claridade que se estabelece num processo tântrico. E toda a nossa percepção se dá a partir de uma nova dimensão - embora em si seja a mesma. Todos os toques, cheiros, olhares, sabores e sensações em vários níveis... purificam-se. Onde percebemos que todos os sentidos estão não mais interpretando, mas sentindo. Onde eles ficam sendo.
E onde está o limite desse processo todo? Em nós. O livre fluir de tudo aquilo que somos, esse sentir, é realizado - ou não - por nossa causa. Nada de traumas, bloqueios, condicionamentos, passado, essas coisas. É apenas uma questão de querer ou não.
Pois esse caminho tântrico é uma forma de processar a vida e suas infinitas possibilidades que somos nós. E tudo aquilo que não nos permitimos realizar, tudo aquilo que não nos permitimos curar, é um pedaço de nós mesmos que está sendo negligenciado. É um perder o contato com uma parte que continuará ali de alguma forma "reclamando" seu espaço. É gerar desnecessariamente uma divisão. Uma divisão em nós mesmos.
Porque estando realmente nesse processo geraremos o contrário, perceberemos partes nossas que não sabíamos que existiam. Visitaremos lugares que não sabíamos que estavam ao tempo todo a nossa volta. Sentiremos de forma nova e lúcida toda essa irrealidade maravilhosa que nos forma. Criar é descobrir e descobrir é curar o que se encontrava oculto. É ser, estar, comungar, é amar. Criar é Amor. Criar é não morte.
Somos o único tipo de animal do planeta que pode recriar-se. O único que pode perceber que é feito de luz. E o erotismo sagrado é perceber-se vivo em constante mutação, fora dos automatismo e condicionamentos embrutecedores e emburrecedores. É nos transformarmos a todo o momento nos filhos de nós mesmos, e nos parirmos a cada instante. É utilizar a capacidade de luz e força presente no sexo para sermos. Permanecemos assim sempre grávidos daquilo que podemos ser... cada vez mais. Essa luz convida-nos a fazer o nosso próprio parto. Nós assim somos uma metáfora de Eros, de Dionísio, de Shiva/Shakti.
E se esse "outro" também sou eu, não há impedimento para que esse fluxo não seja. E se esse outro não sabe disso, podemos - caso tenhamos já realizado isso - mostrá-lo. Podemos segurar a sua mão e sorrir. Podemos abraçá-lo carinhosamente. Podemos apenas ouvi-lo. Embora a abertura final caiba a ele.
A partir do Tantra teremos acesso a toda uma integração (motora, sensitiva, afetiva, sexual e divina). E todas essas portas devem ser abertas. Todas essas salas - que nos compõem - devem ser visitadas. A nossa essência, nossa sexualidade, está relacionada com nossa vontade e necessidade de expansão. Liga-se ao movimento, ao fluxo, a ação. Nossa criatividade então será a maneira como isso desdobrar-se-á em nós. A maneira de sairmos desse labirinto depois de nos tornarmos amigos do minotauro. E pela nossas relações, pela nossa afetividade, direcionada ou geral, é que expressaremos esse poder e o recriaremos infinitamente.
A não percepção de todo esse fluxo causará uma série de "nós", (podemos até perceber o trocadilho involuntário da minha parte e a relação do enquanto um ponto numa corda, ou seja, uma série de pontos ou uma série de eus onde não me percebo em nenhum deles - embora seja todos ao mesmo tempo) uma série de fantasmas; o não perceber desse fluxo gerará uma certa insensibilidade frente ao mundo, característicos daqueles que são a partir do "tanto faz", "dá no mesmo", "é tudo igual", "não sei, não interessa".
E para o Tantra essa insensibilidade, essa incapacidade de perceber os fluxos, é esse eu em estado de choque que pensa "não há nada que eu posso fazer, eu sou assim e ponto". Petrificado e congelado - com medo. É o tradicional "deus me fez assim". Sim, o deus me fez...o "assim" é por minha conta. Mas toda essa petrificação tenderá a aumentar. Todo esse estado de desequilíbrio irá conquistar, pouco a pouco, todo o nosso terreno - interno e externo. Minará aos poucos o corpo e a mente.
O pesquisador Gary Schwartz concluiu um estudo em Harvard onde ele percebeu que pessoas que costumam ter muitas dores de cabeça, freqüentemente apresentam um alto índice de tensão na musculatura facial decorrente de um elevado índice de tensão no organismo como um todo. Vejamos a relação entre pessoas tencionadas, pessoas que se reprimem, pessoas que se contraem e o seu oposto, pessoas que se... expandem. Assim como também as pessoas classificadas como "repressoras" podem ser mais suscetíveis a contrair doenças, como asma, pressão alta e gripes.
Cada vez mais então esse processo de auto-sabotagem se espalhará e nossa capacidade de fluir, de se relacionar, de ser, será comprometida cada vez mais. E no final deixaremos de sentir todo o significado, deixaremos de perceber toda fragrância, deixaremos de nos banhar nesse fluxo cósmico e não saberemos mais o nosso lugar na existência.
Francisco Varela chama o sistema imunológico de segundo cérebro, pois ele, assim como o sistema nervoso, é capaz de recordar, aprender, e assim se adaptar num sentido fisiológico. E a interação harmônica entre mente, sistema nervoso e sistema imunológico fornece a "base" para a influência das emoções sobre a saúde.


49. O espelho
“Todas as coisas são apenas o que são” – afirma Murilo Nunes de Azevedo. Assim através do Tantra percebemos a existência da forma que ela é. E percebemos isso através de nós mesmos. E é preciso gerar o caos dentro de si para dar a luz a uma estrela – diria Nietzsche. E é esse o treinamento básico do Tantra. O caos. O abalar das convenções e das noções preestabelecidas, as noções de tempo e espaço, as noções de bem e de mal, de moral, de certo e errado. Tudo isso é então examinado para que se possa "perceber" sobre qual terreno esses conceitos estão assentados. Contudo convencionalmente a maneira de percebermos e de distinguir entre certo e errado é levarmos em conta o sentimento alheio.
Mas quem é aquele que em mim Goza? Quem é aquele que em mim sente dor, dorme, defeca? Quem é aquele que percebe essa terceira pessoa que pode ir se desdobrando para trás até mergulhar no Vazio? E o que sustenta esses agregados que me formam? De onde vem essa energia que eu devo trabalhar num ritual tântrico? E que brilho é esse que percebo no olhar da mulher que representa todas as estrelas e deusas, mesmo sendo uma só? Mesmo sendo um simples cadáver ambulante, que aspiração é essa que nos faz seguir em frente a procura de respostas? Mesmo sendo um saco de ossos, porque nos emocionamos ao olhar o céu estrelado de uma noite de outono sem luar?

48. O encontro de Shiva e Shakti no lótus de mil pétalas

Deus é Amor
(Jesus, o Cristo)
Desde o paleolítico são realizados festivais sagrados onde a sexualidade é utilizada como uma desencadeadora de forças cósmicas e telúricas. Encontramos entre os gregos práticas religiosas que envolve o sexo. Entre os egípcios os ritos Tifonianos procuravam despertar os iniciados através de orgias e rituais sexuais sagrados. E na Índia, desde os tempos pré-védicos, o maithuna é conhecido; mas é somente dentro do tantrismo que ele se transforma em instrumento de salvação.
A iconografia tântrica dos casais divinos, das inumeráveis formas de Budas e suas consortes, constitui o modelo típico do maithuna. Tem-se a imobilidade do deus e toda a atividade é realizada pela deusa. O espírito sereno em meio ao jogo cósmico. Através do maithuna, falando de forma resumida, controla-se a respiração e trabalha-se a concentração, a retenção, e o objetivo final é a transformação completa do casal humano no casal divino. Não se trata mais de sexo. Pois caso bastasse o coito em si, todos os asnos e todos as coelhas do mundo já teria realizados o seu estado búdico potencial.
A amante então sintetiza toda natureza feminina; ela é a mãe, a irmã, a esposa, a filha, a prostituta, a assassina - de sua voz exala o amor. Dessa união ritualística e mística nasce a unidade de emoção, a experiência paradoxal do eu sou você.
Nesse ponto é importante mencionar duas vertentes básicas dentro do tantrismo tradicional: os samayin, que veneram Shiva e Shakti e trabalham para despertar a kundalini através de práticas psicofisiológicas, e os kaula, que adoram kaulini (a kundalini) e trabalham em ritos de forma concreta.
Contudo, como já foi mencionado, dentro do Tantra existe toda uma linguagem rude, brutal e explícita que é usada como armadilha para os não iniciados. “Pelo mesmos atos que fazem queimar certos homens no inferno durante milhões de anos o tântrico e a tantrika obtêm sua eterna salvação” – avisa Indrabhuti. As mulheres são os deuses, as mulheres são a vida, as mulheres são o adorno. Deves estar sempre em pensamento entre as mulheres, diria o Buda. Radha é concebida como o amor infinito que constitui a própria essência de Krishna. E aquele que chega a compreender a verdade do corpo compreende a verdade do universo.
Nesse sentido empregamos a conjunção dos contrários para efetuar a ruptura do nível comum e redescobrir a espontaneidade primordial. Mas “o Tantra não é leite para crianças” – adverte Julius Evola. E quando o homem tornou-se bípede e ficou em pé, perdeu o olfato, afastou-se da terra, perdeu esse contato básico. E só o sexo pode devolver ao homem o sentido e o gosto dessas origens; só esse "deixar-se levar", esse transe, pode restabelecer esse contato perdido.
O domínio absoluto dos sentidos é necessário para que essa mística seja realizada. Pois a retidão por parte do homem é condição básica para que o ritual seja realizado. Ao mesmo tempo em que a “volúpia” exerce o papel de veículo, proporcionando a máxima tensão que suprime o estado normal de consciência e dá acesso ao estado nirvânico, os textos repetem de forma ininterrupta que “o sêmen não deve ser derramado”.
Pois a Unidade é percebida através da imobilização dos três estados: da respiração, do pensamento e do sêmen. Buscando assim a unificação dos contrários; Sol e Lua, Shiva e Shakti, Ida e Pingala. E numa análise mais profunda lemos o maithuna como uma morte iniciática, uma experiência de morte e ressurreição. O tântrico é um duas vezes nascido.
Mas assim como a natureza não pode ser vista em oposição ao espírito e sim como uma manifestação viva da própria realidade, que abarca a consciência, Shiva e Shakti se diferem apenas a partir do conceito que se faz deles, pois são a mesma realidade no nível absoluto da existência.
"Apesar do isso poder ser apontado com palavras, a realização em si não é um caso de pensar sobre o mecanismo das palavras. Ainda assim, em dependência destes símbolos verbais, o isso da própria mente pode tornar-se manifesto; - diz Khetsün Sangpo Rinpoche - quando ganhamos a iniciação e a transmissão da instrução quintessencial, e então nos retiramos para um lugar solitário, podemos ter estas experiências. Os preceitos não entendidos quando lidos nos livros são compreendidos imediatamente para alguém que então esteja procedendo na base do conhecimento interno. Então, quando morrermos, será como um retorno à nossa mãe, sem a menor preocupação."


47. Sobre a Luz
A necessidade de um mestre é enfatizada em todas as tradições iniciáticas. Dentro do Tantra ele é de vital importância. Existem mestres presentes em diversos níveis, mas normalmente as pessoas necessitam de um mestre que possam ver, tocar, um mestre de carne e osso. Contudo a partir de um determinado ponto de vista todos podem ser nossos mestres. O porteiro de nosso prédio, o motorista da frente num trânsito engarrafado, nosso chefe no trabalho. Pois com esses "mestres" aprenderemos a trabalhar novamente aquilo que muitas vezes havíamos trabalhado através de uma prática sagrada ou psicológica e que achávamos já estar "imunes", processos internos que achávamos ter resolvido ou neutralizado; com nosso porteiro podemos aprender a trabalhar a nossa compaixão, com um motorista desconhecido num trânsito podemos aprender a trabalhar a nossa paciência, com nosso chefe podemos aprender a trabalhar nossa raiva.
Pois no mundo atual um mestre é cada vez mais raro. Verdadeiros mestres de "carne e osso" são difíceis de encontrar e normalmente aqueles que são tidos como tal, não o são. E se um Dalai Lama, uma Pema Chöndrön, uma Machik Labdrön ,um Sogyal Rimpoche, um Padma Santen encontram-se fora de alcance, utilizemos aquele porteiro, aquele motorista, aquele patrão, para nos por à prova. Muitos mestres também trabalham em silêncio evitando a exposição pública. E muitos colocam panfletos em lojas esotéricas e anúncios em jornais.
Dentro do tantrismo budista encontramos uma série de mestres onde podemos nos espelhar, ou simplesmente reverenciar em silêncio. Temos Jetsün Mila - ou Milarepa. Nasceu em berço de ouro, mas após a morte do pai - quando ele ainda era criança - teve todos os bens da família roubados por seu tio, deixando ele, sua irmã e sua mãe sem nada. Para se vingar começou a aprender magia negra, ainda jovem, e depois de dominar vários poderes ele fez cair sobre a casa de seu tio uma chuva de granizo matando dezenas de pessoas.
Impactado com essas mortes Milarepa entrou num estado de profunda reflexão e percebendo seu erro resolveu procurar um mestre que pudesse ajudá-lo a se livrar desse karma negativo. Depois de passar por vários mestres, Milarepa ainda não havia conseguido progredir. Foi então aconselhado a procurar um grande mestre conhecido como Marpa. Ao mesmo tempo, Marpa e sua esposa tiveram um sonho auspicioso onde perceberam a chegada do discípulo.
Depois de muito caminhar a procurá-lo, Milarepa encontrou-o arando um campo nas redondezas de sua casa. Milarepa de imediato não sabia que aquele homem era Marpa, mas no instante que o viu seus pensamentos convencionais se dissiparam. Mais tarde quando foi levado a presença do mestre, Milarepa prostrou-se aos pés dele e lhe implorou para que lhe ensinasse o Caminho.
Marpa respondeu que a iluminação dependeria unicamente de sua própria perseverança e determinou uma série de tarefas quase impossíveis para Milarepa realizar. Mandava-o fazer e desfazer continuamente várias tarefas alegando motivos absurdos para desfazê-las, como que estava bêbado ao ordenar a missão ou ainda alegar que nunca tinha pedido nada daquilo que o discípulo havia feito.
Por fim Marpa ordenou que Milarepa construísse uma torre de nove andares. O discípulo passou por tremendos sofrimentos para realizar o que o mestre lhe havia solicitado, carregando sozinho imensas pedras. Ao terminar Milarepa perguntou a Marpa se agora seria possível que o Caminho lhe fosse mostrado. Marpa respondeu-lhe: "Você acha que é assim tão fácil adquirir os conhecimentos, só porque construiu essa torre? Esta enganado, você tem de me presentear com uma taxa de inscrição!"
Milarepa não possui mais nada a essa altura. Vendo-o nesse estado, a esposa de Marpa lhe presenteou com um saco de cevada e um rolo de tecido. "Vá, dê isso ao meu marido como pagamento de sua taxa de inscrição." Milarepa aceitou e levou os presentes para serem dados a Marpa. Colocou-os junto com os presentes dos outros estudantes e prostrou-se aos pés do mestre. Mas imediatamente ouviu a voz de trovão de Marpa dizendo que aquilo tudo que estava sendo oferecido a ele por Milarepa era dele próprio. "Essa coisas são minhas, você está tentando me enganar?" E expulsou Milarepa do círculo de iniciação.
Milarepa havia perdido toda e qualquer esperança de conseguir obter as iniciações. Desesperado resolveu suicidar-se. Nesse momento Marpa apareceu e lhe revelou que agora ele estava preparado para receber o que havia pedido. Pois todas as expectativas haviam sido destruídas junto com todas as possibilidades de receber alguma coisa sagrada. Milarepa retirou-se numa caverna e após anos de meditação iluminou-se e percebeu todas as realizações comuns e sublimes.
"Milarepa disse ao seu supremo discípulo Gampopa, nos conta Khetsün Sangpo Rinpoche, que recebeu todos os seus ensinamentos, que ao partir lhe concederia sua instrução final e quintessencial. Gampopa sabia que Milarepa tinha lhe transmitido tudo o que ensinava, como se tivesse despejado a água de um pote para outro, e ficou surpreso sobre o que poderia ser esta doutrina mais profunda. Depois, quando estava para partir, ele lembrou Milarepa sobre esta instrução final. Milarepa disse, "Ó, sim, é isto", e puxou seu manto, revelando que suas nádegas estavam como as patas de um animal por ter ficado sentado durante muito tempo em um chão de pedras, sem uma almofada. Ele falou: Meu atingimento da grande realização vem disto. Você precisa deste esforço, não de qualquer outra doutrina. Esta é a essência do meu ensinamento. Se você vai se tornar um Buda ou não, depende do esforço. Com ele, não há dúvidas quanto à sua liberação. Como um filho, faça o que o seu pai lhe diz."
hökyl Lodrö, ou Marpa, foi o principal discípulo de Naropa. Filho de uma família de agricultores, desde cedo escolheu dedicar-se às buscas sagradas. Estudou sânscrito, tibetano, e vários outros idiomas. E rapidamente começou a ganhar muito dinheiro como erudito.
Nessa altura resolveu viajar à Índia, estudar e traduzir textos sagrados importantes e se estabelecer como um grande erudito. Depois de meses, Marpa e um amigo cruzaram os Himalaias e chegaram a Índia. Separam-se e como cada um deles possuía um grau de erudição respeitável decidiram procurar os grandes mestres por si só. Combinaram de se encontrar num determinado vilarejo para retornarem juntos ao Tibete.
Como Marpa tinha o conhecimento de onde morava um grande mestre, imediatamente foi ao seu encontro. Decepcionou-se ao chegar e se deparar com uma casa humilde em meio a floresta. Acostumado com a pomposidade dos eruditos estranhou o fato mas imaginou que essa era a forma que viviam os grandes mestres da Índia.
Deu-lhe a maior parte do ouro que havia trazido, contou-lhe sua estória e solicitou que lhe fosse ensinado o Grande Conhecimento. Naropa concordou com tudo, recolheu o ouro e começou a lhe passar o que havia sido solicitado. Depois de um certo tempo, Marpa achou que havia acumulado bastante erudição e retornou rumo ao Tibete. Encontrou o amigo no local combinado e mostrou-lhe o que havia conseguido. O amigo desabou a rir, e lhe disse que aqueles ensinamentos já haviam sido traduzidos e eram considerados elementares. Disse que se surpreendia por Marpa não conhecê-los.
Frustrado, conturbado e furioso, Marpa decidiu voltar até a cabana de Naropa e lhe solicitar ensinamentos mais valiosos. "Lamento, mas para receber esses ensinamentos você deve encontrar um homem chamado Kukuripa" - informou-lhe Naropa para surpresa de Marpa.
Desesperado por não conseguir o que necessitava Marpa resolveu procurar o tal homem que vivia no meio de uma lago envenenado. Atravessou condições diversas mas chegou até o seu destino. Ao chegar na ilha onde Kukuripa morava encontrou apenas um velho indiano que vivia em meio a sujeira cercado por centenas de cadelas iradas. A situação era bizarra. Ainda assim Marpa se dirigiu ao homem. Obteve como resposta frases sem sentidos e gestos aleatórios sem significados.
A situação ia ficando cada vez mais insustentável, pois além de não conseguir se comunicar com o homem, para perguntar-lhe se ele conhecia o tal de Kukuripa, tinha de estar constantemente atento para com as cadelas iradas. Quando conseguia fazer amizade com uma delas, outra ameaçava lhe morder, outra latia, para o desespero total de Marpa.
A situação se prolongou por vários dias e quando a saúde mental de Marpa estava por um fio, o velho homem que era Kukuripa começou a lhe ensinar o que ele desejava. As cadelas o deixaram em paz e ele recebeu os ensinamentos.
Depois de um tempo estudando com Kukuripa, Marpa retornou à Naropa que lhe aconselhou voltar para casa e ensinar. Encontrou o seu companheiro esperando-o no vilarejo e juntos retornaram ao Tibete. Como Marpa havia ficado em silêncio o tempo todo, seu companheiro começou a imaginar que o amigo havia conseguido um ensinamento valiosíssimo e que por isso não queria nem comentar nada a respeito. Aproveitando um momento de distração de Marpa, seu companheiro fez uma manobra brusca com o barco e todos os ensinamentos que Marpa havia conseguido caíram no rio.
Com esse enorme sentimento de perda Marpa voltou ao Tibete. Havia aprendido tanto mas não tinha nenhum texto para provar a veracidade de suas afirmações. Apesar disso, passou vários anos trabalhando e ensinando. Depois de um tempo percebeu que todos aqueles textos na verdade eram inúteis. Pois a sabedoria que havia conseguido estava presente em tudo o que havia passado durante a viagem - e não nos textos em si.
A partir daí Marpa perdeu quase todo o interesse de tirar proveito dos ensinamentos. Nem preocupava-se mais em ganhar muito dinheiro ou em obter muito prestígio. Sentindo-se inspirado em atingir a iluminação resolveu voltar a Índia. Juntou muito ouro em pó e partiu novamente em busca de Naropa.
Nesse novo encontro porém Marpa assustou-se com a quase total indiferença do mestre a seu respeito. As primeiras palavras que ouviu foi: "Prazer em vê-lo novamente, mas quanto ouro você tem para pagar pelos meus ensinamentos?". Embora Marpa tivesse uma grande quantidade de ouro ofereceu a Naropa apenas a metade do que tinha, pois queria guardar o resto para qualquer eventualidade que surgisse na viagem de volta. "Isso, não é nada, Quero mais!" - respondeu Naropa para a surpresa de Marpa.
Marpa deu-lhe um pouco mais. A barganha continuou até Naropa desatar a rir e dizer: "Você acha que pode comprar meus ensinamentos com esse embuste?". Nesse ponto Marpa entregou todo o ouro que havia consigo. Para seu assombro e desespero Naropa pegou todo o ouro e jogou pelo ar sendo ele levado pelo vento.
Os sentidos de Marpa pareciam começar a falhar àquela singularidade de comportamento com o seu ouro, que havia conquistado com tanto trabalho, o deixou em ponto de enlouquecer. Então ao ouvir as palavras do mestre "Que necessidade tenho de ouro? O mundo todo é ouro para mim!". Houve um momento de abertura na mente de Marpa. Tudo parecia ter se tornado claro. Permaneceu então com Naropa e recebeu então o Conhecimento através de um intenso trenamento.
Naropa (1016 - 1100) era um renomado erudito e possuía os selos dos sutras, tantras e vinays. Era abade do mosteiro Nalanda - um dos maiores de sua época. Era praticamente imbatível nos debates e poucos ousavam empreender uma contenda com ele. Porém essa profunda intelectualidade mascarava a sua não percepção total dos ensinamentos. Um dia uma mulher medonhamente feia apontou para ele e lhe perguntou: "O que você está estudando?". E ele respondeu: "Estudo o Guhyasamaja Tantra". "Você consegue ler as palavras?", continuou a velha. "Sim", respondeu ele.
A velha mulher muito feliz começou a dançar. Então Naropa completou: "Não somente posso lê-las como entendê-las também." Nesse momento a mulher parou de dançar e desatou a chorar. Assustado Naropa perguntou o que havia acontecido e a mulher lhe respondeu que somente seu irmão Tilopa poderia conhecer o significado das palavras.
Ao ouvir seu nome, Naropa sentiu um grande ímpeto desconhecido de procurá-lo. Após meditar sobre a divindade Chakrasamvara recebeu das dakinis a orientação de onde encontrar Tilopa. Percorreu por vários meses regiões austeras e íngremes, passou frio e chuva e não conseguia encontrá-lo em lugar algum.
Perguntou enfim a um camponês que encontrou pelo caminho se ele o conhecia. O velho homem disse que não conhecia nenhum mestre chamado Tilopa, mas que havia um mendigo do mesmo nome que vivia numa região de difícil acesso. Naropa não tinha o que perder e foi até o local indicado pelo velho homem.
Ao chegar encontrou um velho de aspecto louco sentado em frente a um tonel de madeira, cheio de peixes, uns vivos outros não. O velho homem comia os peixes como um cachorro velho esfomeado. Naropa prostrou-se em sua frente e solicitou que fosse aceito como discípulo. O velho homem olhou assustado para ele e disse: "De que você está falando? Não vê que sou apenas um mendigo?" Naropa insistiu tanto que foi aceito.
Tilopa não comia os peixes por estar com fome, mas sim para liberá-los de seus karmas, já que os peixes (assim como as galinhas) são completamente ignorantes do que fazem ou não, criaturas com muitas ações negativas. Ao comê-los ele realizava uma ligação com a sua consciência e os libertava para irem para o paraíso dos peixes.
Devido aos seus apegos conceituais Naropa não encontrava-se preparado para receber os ensinamentos e foi trabalhado duramente por Tilopa. Certa vez foram até uma torre de nove andares onde Tilopa perguntou: "Há alguém que para obedecer as ordens do mestre possa pular daqui?". Naropa entendeu o recado e pulou. Seu corpo espatifou-se no chão. Tilopa desceu da torre e lhe perguntou: "Você está sentido dor?"
"Não apenas dor... eu não passo de um cadáver." Tilopa através de seus poderes curou Naropa para que continuassem a sua jornada. Outra vez Tilopa com fome pediu comida ao discípulo que por não ter conseguido pescar nada foi mendigar comida para seu mestre. Foi ajudado por um grupo de lavradores que ofereceram um pouco da sopa que haviam feito, para Naropa dar à Tilopa.
Satisfeito com a felicidade de Tilopa ao comer a sopa, Naropa resolveu voltar e pedir mais. Ao chegar no acampamento os lavradores já haviam voltado para lavoura mas haviam deixado a sopa dentro do caldeirão nos restos das brasas da fogueira. "A única coisa a fazer é roubá-la." Pensou. Os cachorros do acampamento o denunciaram e ele foi espancado quase até a morte.
Novamente seu mestre o curou e eles voltaram à estrada. Numa certa tarde Tilopa lhe disse "Preciso de muito dinheiro". Sem entender o que seu mestre poderia fazer com muito dinheiro Naropa foi tentar arranjá-lo, tentou sem sucesso assaltar um homem rico mas foi novamente espancado até a morte. Tilopa chegou até ele e perguntou "Você está sentindo dor?" Recebeu a mesma e óbvia resposta, curou-o e os dois continuaram a jornada.
Durante aproximadamente doze anos, Naropa passou por doze provas maiores e doze menores. Processo que visava purificá-lo de seu forte apego a conceitualidade. Numa manhã enquanto montavam um acampamento, Tilopa pediu para que Naropa pegasse água para ele. Disse que ficaria ali para fazer uma fogueira. Quando o discípulo chegou com a água o mestre saltou da fogueira que estava fazendo e segurou a cabeça de Naropa com a mão esquerda.
"Mostre-me sua testa" Ordenou o mestre. Com a mão direita Tilopa pegou sua sandália e bateu na testa de Naropa, que caiu inconsciente. Ao voltar a si, todas as qualidades e sabedorias de seu mestre tinha surgido em sua mente. Os dois tornaram-se um só em realização.
Drukpa Kunley (1455-1570) pode ser classificado entre os sábios loucos. Atingindo a iluminação cedo, sua vida de 115 anos fluiu por um processo espiritual de caráter "anárquico". Trocava seus ensinamentos por cerveja, andava quase sem roupa entoando poesias (iniciáticas que são até hoje estudadas), realizava milagres e se colocava como um incessante questionador dos sistemas religiosos tradicionais. Era um grande yogue, no sentido verdadeiro do termo. Sua capacidade de perceber além da forma fazia com que ele conseguisse ver a potencialidade que havia em diversas mulheres (pela percepção dos sinais das dakinis) e a partir daí, fazer com que elas se iniciassem dentro do tantrismo e se iluminassem. Ele chegou a iluminar cerca de 5.000 mulheres, de diversos níveis sociais, através das práticas tântricas. É importante ficar atento à má compreensão que "nós" ocidentais com nossa tradição judaico-cristã venhamos a fazer com relação a esse ponto. Pois embora tenha havido muito sexo em sua vida, era sempre no sentido de libertar espiritualmente as mulheres com quem fazia amor. De certa forma poderíamos rever essa frase... não havia sexo em sua vida, havia Tantra.
Além desses mestres do passado existe dentro do budismo tibetano várias linhagens de mestres altamente qualificados. Zimmer, então, nos diz: "O grande paradoxo do budismo é que Buda jamais existiu para iluminar o mundo com ensinamentos budistas. A vida e a missão de Sidarta Gautama, o Shakyamuni, é apenas uma incompreensão geral por parte do mundo não iluminado".