mardi 10 juillet 2007


46. Paradoxo
Mas o que é necessário para que nos transformemos? O que é preciso para que essa irracionalidade seja transmutada? Poderíamos começar ao perceber que a pobreza exterior se reflete na interior, que as fronteiras, que a ganância, que o fanatismo, geram um estado interno de medo, mesmo naqueles que não são afetados diretamente por elas. Mas a pergunta continuaria: o que leva à essa pobreza, à essa necessidade de fronteiras, à essa ganância, à esse medo? Para o Tantra é a mente ordinária que cria tudo isso através do eu.
"Para haver riqueza tem de haver pobreza" - costumava afirmar um conhecido meu. Mas se trataria apenas de uma questão de puro condicionamento externo? Seria apenas uma questão de modelo de mundo apoiado na tradição (já ultrapassada) de Darwin onde o mais forte sobrevive? Haverá alguma coisa no "interior" do homem que se alimentaria desse horror?
Para a construçao que convecionamos chamar de Eu, não interessa a compreensao dessa questao. Para "mim" muito, para o "outro" a sobra (se houver sobra). E quando o Tantra solicita, perceba, ele procura fazer com que esse processo seja estancado. E quando utiliza uma linguagem rude, cruel e explícita, ele tenta dar um curto circuito nesse processo condicionado.
E por fim esse "eu" achou um maravilhoso estratagema para se manter imune de ataques. Criou a noção de que através de uma luta, de um processo, de um esforço, ele própria poderia ser aniquilado.
E esse "eu" sentou-se tranqüilo, bebendo seu chá das cinco, a ver toda uma série de religiões, filosofias, seitas, credos e partidos lutando para tentar aniquila-lo.
Por vezes assustou-se, quando alguns deram a outra face ao inimigo (sem qualquer relação de tempo incluída no ato), ou quando outros cortaram de um só golpe a propria cabeça (também sem qualquer relação de tempo no ato). Mas posteriormente voltava a ficar tranqüilo ao perceber que esses atos não tinham muita continuidade.
E assim as necessidades imaginárias, ilusórias, dominam todas as outras necessidades, como a necessidade de apenas ser, por exemplo.
No tantrismo budista encontramos uma boa forma de dar um curto circuito nesse processo, nesse meu, nesse mim, nesse eu: a compaixão.
No ideal do Bodhisattva, o objetivo fundamental de toda a vida é servir o outro. Esse ideal divide-se em seis estados: generosidade, sinceridade, paciência, entusiasmo, meditação e sabedoria. A compaixão é essencial no estágio inicial, no estágio intermediário e no estágio final desse "desenvolvimento" espiritual. Percebam o quanto isso pode ser subversivo! Leia essa frase na primeira pessoa: o objetivo fundamental de toda minha vida é servir o outro. Pode dar até um desconforto. "Como assim, servir o outro... que espiritualidade há em me transformar no serviçal de alguém?". Percebam o curto circuito que isso pode dar na mente, no mim, no eu. E percebam como o mundo seria diferente se todos ajudassem a todos. Nirvana. Paraíso. Vahala. Como diria Milarepa na canção de Drugpa Künleg: incapaz de amar todos os seres como seus filhos, de que adianta as solenes preces e rituais?
Dentro do Budismo Tântrico encontramos que o conhecimento e o entendimento se desenvolvem baseados em uma consciência que possua a capacidade de perceber claramente seus objetos; quando essa base é suprida a capacidade por sua vez aumenta mais ainda, o alcance dos objetos de conhecimento expande-se e a sabedoria se aprofunda - a partir daí desenvolve-se o infinito atual.
Também dentro do Tantra budista encontramos uma prática meditativa bastante forte e muito útil se desejamos dar um curto circuito nesse eu - a meditação Tonglen. Essa prática visa que nos conectemos com o sofrimento - nosso e o que nos rodeia. Esse método visa eliminar nosso medo da dor, visa eliminar a dureza de nosso coração e despertar assim a compaixão.
Iniciamos a prática recebendo para nós a dor alheia. Recebendo a dor de alguém que sofre e que queremos ajudar. Se uma pessoa idosa, por exemplo, está sofrendo, inspiramos para nós a sua dor e desejamos que ela se libere desse peso e desse medo. Ao expirarmos, enviamos felicidade e alegria à essa pessoa idosa. Esse é o ponto central da meditação: pegar a dor alheia e enviar relaxamento, bem estar, cura.
É uma prática difícil pois normalmente teremos medo. Resistiremos a ela. Nossa mente pensará: "Como assim pegar para mim a dor alheia? Ah, isso já é demais". Driblamos então essa mente e mudamos o foco. Trabalhando em cima de nossa própria dor - seja ela raiva, angústia, impotência, ou até mesmo alguma dor física. Percebamos então essa raiva que nos habita e inspiramos por aqueles que também estão dominados pela raiva e (expirando) mandemos amor para nós mesmo e para aqueles que estão acorrentados por esse sentimento.
Essa é uma prática poderosa pois trabalha com um padrão inverso ao usual. Somos "bons", fazemos "bondade" e esperamos que venha para nós... bondade. Nessa prática realizamos a bondade trazendo para nós a dor alheia. O esquema básico de buscar o prazer e evitar o sofrimento é colocado em xeque. E então toda uma série de padrões bastante arraigados começam a se mostrar mais maleáveis.
A meditação de Tonglen pode ser realizada para todos aqueles que necessitem: para os que sofrem, para os que estão doentes, para os que estão morrendo, para os que já morreram. Tantra é passar por alguém que sofre e perceber-se ali, naquela situação. Através dessa prática podemos ajudar o próximo de uma forma silenciosa e eficaz.