mardi 10 juillet 2007



47. Sobre a Luz
A necessidade de um mestre é enfatizada em todas as tradições iniciáticas. Dentro do Tantra ele é de vital importância. Existem mestres presentes em diversos níveis, mas normalmente as pessoas necessitam de um mestre que possam ver, tocar, um mestre de carne e osso. Contudo a partir de um determinado ponto de vista todos podem ser nossos mestres. O porteiro de nosso prédio, o motorista da frente num trânsito engarrafado, nosso chefe no trabalho. Pois com esses "mestres" aprenderemos a trabalhar novamente aquilo que muitas vezes havíamos trabalhado através de uma prática sagrada ou psicológica e que achávamos já estar "imunes", processos internos que achávamos ter resolvido ou neutralizado; com nosso porteiro podemos aprender a trabalhar a nossa compaixão, com um motorista desconhecido num trânsito podemos aprender a trabalhar a nossa paciência, com nosso chefe podemos aprender a trabalhar nossa raiva.
Pois no mundo atual um mestre é cada vez mais raro. Verdadeiros mestres de "carne e osso" são difíceis de encontrar e normalmente aqueles que são tidos como tal, não o são. E se um Dalai Lama, uma Pema Chöndrön, uma Machik Labdrön ,um Sogyal Rimpoche, um Padma Santen encontram-se fora de alcance, utilizemos aquele porteiro, aquele motorista, aquele patrão, para nos por à prova. Muitos mestres também trabalham em silêncio evitando a exposição pública. E muitos colocam panfletos em lojas esotéricas e anúncios em jornais.
Dentro do tantrismo budista encontramos uma série de mestres onde podemos nos espelhar, ou simplesmente reverenciar em silêncio. Temos Jetsün Mila - ou Milarepa. Nasceu em berço de ouro, mas após a morte do pai - quando ele ainda era criança - teve todos os bens da família roubados por seu tio, deixando ele, sua irmã e sua mãe sem nada. Para se vingar começou a aprender magia negra, ainda jovem, e depois de dominar vários poderes ele fez cair sobre a casa de seu tio uma chuva de granizo matando dezenas de pessoas.
Impactado com essas mortes Milarepa entrou num estado de profunda reflexão e percebendo seu erro resolveu procurar um mestre que pudesse ajudá-lo a se livrar desse karma negativo. Depois de passar por vários mestres, Milarepa ainda não havia conseguido progredir. Foi então aconselhado a procurar um grande mestre conhecido como Marpa. Ao mesmo tempo, Marpa e sua esposa tiveram um sonho auspicioso onde perceberam a chegada do discípulo.
Depois de muito caminhar a procurá-lo, Milarepa encontrou-o arando um campo nas redondezas de sua casa. Milarepa de imediato não sabia que aquele homem era Marpa, mas no instante que o viu seus pensamentos convencionais se dissiparam. Mais tarde quando foi levado a presença do mestre, Milarepa prostrou-se aos pés dele e lhe implorou para que lhe ensinasse o Caminho.
Marpa respondeu que a iluminação dependeria unicamente de sua própria perseverança e determinou uma série de tarefas quase impossíveis para Milarepa realizar. Mandava-o fazer e desfazer continuamente várias tarefas alegando motivos absurdos para desfazê-las, como que estava bêbado ao ordenar a missão ou ainda alegar que nunca tinha pedido nada daquilo que o discípulo havia feito.
Por fim Marpa ordenou que Milarepa construísse uma torre de nove andares. O discípulo passou por tremendos sofrimentos para realizar o que o mestre lhe havia solicitado, carregando sozinho imensas pedras. Ao terminar Milarepa perguntou a Marpa se agora seria possível que o Caminho lhe fosse mostrado. Marpa respondeu-lhe: "Você acha que é assim tão fácil adquirir os conhecimentos, só porque construiu essa torre? Esta enganado, você tem de me presentear com uma taxa de inscrição!"
Milarepa não possui mais nada a essa altura. Vendo-o nesse estado, a esposa de Marpa lhe presenteou com um saco de cevada e um rolo de tecido. "Vá, dê isso ao meu marido como pagamento de sua taxa de inscrição." Milarepa aceitou e levou os presentes para serem dados a Marpa. Colocou-os junto com os presentes dos outros estudantes e prostrou-se aos pés do mestre. Mas imediatamente ouviu a voz de trovão de Marpa dizendo que aquilo tudo que estava sendo oferecido a ele por Milarepa era dele próprio. "Essa coisas são minhas, você está tentando me enganar?" E expulsou Milarepa do círculo de iniciação.
Milarepa havia perdido toda e qualquer esperança de conseguir obter as iniciações. Desesperado resolveu suicidar-se. Nesse momento Marpa apareceu e lhe revelou que agora ele estava preparado para receber o que havia pedido. Pois todas as expectativas haviam sido destruídas junto com todas as possibilidades de receber alguma coisa sagrada. Milarepa retirou-se numa caverna e após anos de meditação iluminou-se e percebeu todas as realizações comuns e sublimes.
"Milarepa disse ao seu supremo discípulo Gampopa, nos conta Khetsün Sangpo Rinpoche, que recebeu todos os seus ensinamentos, que ao partir lhe concederia sua instrução final e quintessencial. Gampopa sabia que Milarepa tinha lhe transmitido tudo o que ensinava, como se tivesse despejado a água de um pote para outro, e ficou surpreso sobre o que poderia ser esta doutrina mais profunda. Depois, quando estava para partir, ele lembrou Milarepa sobre esta instrução final. Milarepa disse, "Ó, sim, é isto", e puxou seu manto, revelando que suas nádegas estavam como as patas de um animal por ter ficado sentado durante muito tempo em um chão de pedras, sem uma almofada. Ele falou: Meu atingimento da grande realização vem disto. Você precisa deste esforço, não de qualquer outra doutrina. Esta é a essência do meu ensinamento. Se você vai se tornar um Buda ou não, depende do esforço. Com ele, não há dúvidas quanto à sua liberação. Como um filho, faça o que o seu pai lhe diz."
hökyl Lodrö, ou Marpa, foi o principal discípulo de Naropa. Filho de uma família de agricultores, desde cedo escolheu dedicar-se às buscas sagradas. Estudou sânscrito, tibetano, e vários outros idiomas. E rapidamente começou a ganhar muito dinheiro como erudito.
Nessa altura resolveu viajar à Índia, estudar e traduzir textos sagrados importantes e se estabelecer como um grande erudito. Depois de meses, Marpa e um amigo cruzaram os Himalaias e chegaram a Índia. Separam-se e como cada um deles possuía um grau de erudição respeitável decidiram procurar os grandes mestres por si só. Combinaram de se encontrar num determinado vilarejo para retornarem juntos ao Tibete.
Como Marpa tinha o conhecimento de onde morava um grande mestre, imediatamente foi ao seu encontro. Decepcionou-se ao chegar e se deparar com uma casa humilde em meio a floresta. Acostumado com a pomposidade dos eruditos estranhou o fato mas imaginou que essa era a forma que viviam os grandes mestres da Índia.
Deu-lhe a maior parte do ouro que havia trazido, contou-lhe sua estória e solicitou que lhe fosse ensinado o Grande Conhecimento. Naropa concordou com tudo, recolheu o ouro e começou a lhe passar o que havia sido solicitado. Depois de um certo tempo, Marpa achou que havia acumulado bastante erudição e retornou rumo ao Tibete. Encontrou o amigo no local combinado e mostrou-lhe o que havia conseguido. O amigo desabou a rir, e lhe disse que aqueles ensinamentos já haviam sido traduzidos e eram considerados elementares. Disse que se surpreendia por Marpa não conhecê-los.
Frustrado, conturbado e furioso, Marpa decidiu voltar até a cabana de Naropa e lhe solicitar ensinamentos mais valiosos. "Lamento, mas para receber esses ensinamentos você deve encontrar um homem chamado Kukuripa" - informou-lhe Naropa para surpresa de Marpa.
Desesperado por não conseguir o que necessitava Marpa resolveu procurar o tal homem que vivia no meio de uma lago envenenado. Atravessou condições diversas mas chegou até o seu destino. Ao chegar na ilha onde Kukuripa morava encontrou apenas um velho indiano que vivia em meio a sujeira cercado por centenas de cadelas iradas. A situação era bizarra. Ainda assim Marpa se dirigiu ao homem. Obteve como resposta frases sem sentidos e gestos aleatórios sem significados.
A situação ia ficando cada vez mais insustentável, pois além de não conseguir se comunicar com o homem, para perguntar-lhe se ele conhecia o tal de Kukuripa, tinha de estar constantemente atento para com as cadelas iradas. Quando conseguia fazer amizade com uma delas, outra ameaçava lhe morder, outra latia, para o desespero total de Marpa.
A situação se prolongou por vários dias e quando a saúde mental de Marpa estava por um fio, o velho homem que era Kukuripa começou a lhe ensinar o que ele desejava. As cadelas o deixaram em paz e ele recebeu os ensinamentos.
Depois de um tempo estudando com Kukuripa, Marpa retornou à Naropa que lhe aconselhou voltar para casa e ensinar. Encontrou o seu companheiro esperando-o no vilarejo e juntos retornaram ao Tibete. Como Marpa havia ficado em silêncio o tempo todo, seu companheiro começou a imaginar que o amigo havia conseguido um ensinamento valiosíssimo e que por isso não queria nem comentar nada a respeito. Aproveitando um momento de distração de Marpa, seu companheiro fez uma manobra brusca com o barco e todos os ensinamentos que Marpa havia conseguido caíram no rio.
Com esse enorme sentimento de perda Marpa voltou ao Tibete. Havia aprendido tanto mas não tinha nenhum texto para provar a veracidade de suas afirmações. Apesar disso, passou vários anos trabalhando e ensinando. Depois de um tempo percebeu que todos aqueles textos na verdade eram inúteis. Pois a sabedoria que havia conseguido estava presente em tudo o que havia passado durante a viagem - e não nos textos em si.
A partir daí Marpa perdeu quase todo o interesse de tirar proveito dos ensinamentos. Nem preocupava-se mais em ganhar muito dinheiro ou em obter muito prestígio. Sentindo-se inspirado em atingir a iluminação resolveu voltar a Índia. Juntou muito ouro em pó e partiu novamente em busca de Naropa.
Nesse novo encontro porém Marpa assustou-se com a quase total indiferença do mestre a seu respeito. As primeiras palavras que ouviu foi: "Prazer em vê-lo novamente, mas quanto ouro você tem para pagar pelos meus ensinamentos?". Embora Marpa tivesse uma grande quantidade de ouro ofereceu a Naropa apenas a metade do que tinha, pois queria guardar o resto para qualquer eventualidade que surgisse na viagem de volta. "Isso, não é nada, Quero mais!" - respondeu Naropa para a surpresa de Marpa.
Marpa deu-lhe um pouco mais. A barganha continuou até Naropa desatar a rir e dizer: "Você acha que pode comprar meus ensinamentos com esse embuste?". Nesse ponto Marpa entregou todo o ouro que havia consigo. Para seu assombro e desespero Naropa pegou todo o ouro e jogou pelo ar sendo ele levado pelo vento.
Os sentidos de Marpa pareciam começar a falhar àquela singularidade de comportamento com o seu ouro, que havia conquistado com tanto trabalho, o deixou em ponto de enlouquecer. Então ao ouvir as palavras do mestre "Que necessidade tenho de ouro? O mundo todo é ouro para mim!". Houve um momento de abertura na mente de Marpa. Tudo parecia ter se tornado claro. Permaneceu então com Naropa e recebeu então o Conhecimento através de um intenso trenamento.
Naropa (1016 - 1100) era um renomado erudito e possuía os selos dos sutras, tantras e vinays. Era abade do mosteiro Nalanda - um dos maiores de sua época. Era praticamente imbatível nos debates e poucos ousavam empreender uma contenda com ele. Porém essa profunda intelectualidade mascarava a sua não percepção total dos ensinamentos. Um dia uma mulher medonhamente feia apontou para ele e lhe perguntou: "O que você está estudando?". E ele respondeu: "Estudo o Guhyasamaja Tantra". "Você consegue ler as palavras?", continuou a velha. "Sim", respondeu ele.
A velha mulher muito feliz começou a dançar. Então Naropa completou: "Não somente posso lê-las como entendê-las também." Nesse momento a mulher parou de dançar e desatou a chorar. Assustado Naropa perguntou o que havia acontecido e a mulher lhe respondeu que somente seu irmão Tilopa poderia conhecer o significado das palavras.
Ao ouvir seu nome, Naropa sentiu um grande ímpeto desconhecido de procurá-lo. Após meditar sobre a divindade Chakrasamvara recebeu das dakinis a orientação de onde encontrar Tilopa. Percorreu por vários meses regiões austeras e íngremes, passou frio e chuva e não conseguia encontrá-lo em lugar algum.
Perguntou enfim a um camponês que encontrou pelo caminho se ele o conhecia. O velho homem disse que não conhecia nenhum mestre chamado Tilopa, mas que havia um mendigo do mesmo nome que vivia numa região de difícil acesso. Naropa não tinha o que perder e foi até o local indicado pelo velho homem.
Ao chegar encontrou um velho de aspecto louco sentado em frente a um tonel de madeira, cheio de peixes, uns vivos outros não. O velho homem comia os peixes como um cachorro velho esfomeado. Naropa prostrou-se em sua frente e solicitou que fosse aceito como discípulo. O velho homem olhou assustado para ele e disse: "De que você está falando? Não vê que sou apenas um mendigo?" Naropa insistiu tanto que foi aceito.
Tilopa não comia os peixes por estar com fome, mas sim para liberá-los de seus karmas, já que os peixes (assim como as galinhas) são completamente ignorantes do que fazem ou não, criaturas com muitas ações negativas. Ao comê-los ele realizava uma ligação com a sua consciência e os libertava para irem para o paraíso dos peixes.
Devido aos seus apegos conceituais Naropa não encontrava-se preparado para receber os ensinamentos e foi trabalhado duramente por Tilopa. Certa vez foram até uma torre de nove andares onde Tilopa perguntou: "Há alguém que para obedecer as ordens do mestre possa pular daqui?". Naropa entendeu o recado e pulou. Seu corpo espatifou-se no chão. Tilopa desceu da torre e lhe perguntou: "Você está sentido dor?"
"Não apenas dor... eu não passo de um cadáver." Tilopa através de seus poderes curou Naropa para que continuassem a sua jornada. Outra vez Tilopa com fome pediu comida ao discípulo que por não ter conseguido pescar nada foi mendigar comida para seu mestre. Foi ajudado por um grupo de lavradores que ofereceram um pouco da sopa que haviam feito, para Naropa dar à Tilopa.
Satisfeito com a felicidade de Tilopa ao comer a sopa, Naropa resolveu voltar e pedir mais. Ao chegar no acampamento os lavradores já haviam voltado para lavoura mas haviam deixado a sopa dentro do caldeirão nos restos das brasas da fogueira. "A única coisa a fazer é roubá-la." Pensou. Os cachorros do acampamento o denunciaram e ele foi espancado quase até a morte.
Novamente seu mestre o curou e eles voltaram à estrada. Numa certa tarde Tilopa lhe disse "Preciso de muito dinheiro". Sem entender o que seu mestre poderia fazer com muito dinheiro Naropa foi tentar arranjá-lo, tentou sem sucesso assaltar um homem rico mas foi novamente espancado até a morte. Tilopa chegou até ele e perguntou "Você está sentindo dor?" Recebeu a mesma e óbvia resposta, curou-o e os dois continuaram a jornada.
Durante aproximadamente doze anos, Naropa passou por doze provas maiores e doze menores. Processo que visava purificá-lo de seu forte apego a conceitualidade. Numa manhã enquanto montavam um acampamento, Tilopa pediu para que Naropa pegasse água para ele. Disse que ficaria ali para fazer uma fogueira. Quando o discípulo chegou com a água o mestre saltou da fogueira que estava fazendo e segurou a cabeça de Naropa com a mão esquerda.
"Mostre-me sua testa" Ordenou o mestre. Com a mão direita Tilopa pegou sua sandália e bateu na testa de Naropa, que caiu inconsciente. Ao voltar a si, todas as qualidades e sabedorias de seu mestre tinha surgido em sua mente. Os dois tornaram-se um só em realização.
Drukpa Kunley (1455-1570) pode ser classificado entre os sábios loucos. Atingindo a iluminação cedo, sua vida de 115 anos fluiu por um processo espiritual de caráter "anárquico". Trocava seus ensinamentos por cerveja, andava quase sem roupa entoando poesias (iniciáticas que são até hoje estudadas), realizava milagres e se colocava como um incessante questionador dos sistemas religiosos tradicionais. Era um grande yogue, no sentido verdadeiro do termo. Sua capacidade de perceber além da forma fazia com que ele conseguisse ver a potencialidade que havia em diversas mulheres (pela percepção dos sinais das dakinis) e a partir daí, fazer com que elas se iniciassem dentro do tantrismo e se iluminassem. Ele chegou a iluminar cerca de 5.000 mulheres, de diversos níveis sociais, através das práticas tântricas. É importante ficar atento à má compreensão que "nós" ocidentais com nossa tradição judaico-cristã venhamos a fazer com relação a esse ponto. Pois embora tenha havido muito sexo em sua vida, era sempre no sentido de libertar espiritualmente as mulheres com quem fazia amor. De certa forma poderíamos rever essa frase... não havia sexo em sua vida, havia Tantra.
Além desses mestres do passado existe dentro do budismo tibetano várias linhagens de mestres altamente qualificados. Zimmer, então, nos diz: "O grande paradoxo do budismo é que Buda jamais existiu para iluminar o mundo com ensinamentos budistas. A vida e a missão de Sidarta Gautama, o Shakyamuni, é apenas uma incompreensão geral por parte do mundo não iluminado".