lundi 9 juillet 2007



32. Shiva sem Shakti é shava.
Ninguém conseguirá obter a perfeição através de operações difíceis e tediosas,
Mas pode-se adquirir facilmente a perfeição pela satisfação de todos os desejos
(Guhyasamaja-Tantra)

Mas não é fácil definir o que é tantrismo. Podemos dizer que é um grande movimento filosófico e religioso que se estendeu a partir do século IV. Que esse movimento foi assimilado por todas as grandes tradições indianas, assim como foi também por várias linhas terapêuticas de nossa época que perceberam a necessidade de se trabalhar (também) com o corpo. Que há o tantrismo budista, o indiano, e até entre os jainas encontramos certas técnicas tântricas, além das influências tântricas entre os Shivaístas de Caxemira, por exemplo. Mas defini-lo em palavras é difícil. Quase impossível.
De acordo com as tradições budistas o tantrismo foi introduzido por Asanga (mestre yogacãra por volta do ano 400) e por Nagarjuna (um dos principais representantes da escola madhyamika por volta do século II). Os tantras budistas classificam-se em quatro grupos: kryya-tantra, carya-tantra, yoga-tantra e anuttara-tantra. Os dois primeiros dizem respeito aos rituais e os seguintes dizem respeito aos processos yoguicos por meio dos quais se realiza a verdade suprema. Contudo, quase todos os textos tântricos contêm textos rituais e filosóficos além de processos yoguicos.
Inicialmente o tantrismo desenvolveu-se nas duas regiões fronteiriças da Índia (no noroeste, fronteira com o Afeganistão e na parte oriental de Bengala). “O tantrismo desenvolveu-se, sobretudo no começo, nas províncias mediocremente hinduizadas, onde a contra ofensiva espiritual das raízes aborígenes era mais forte”, afirma Mircea Eliade.
E com o tantrismo, pela primeira vez na história espiritual da Índia ariana, a Deusa conquista um lugar de importância através de divindades femininas a partir do século II: Prajnaparamita, a sabedoria suprema; Tara, a epifania da Grande Deusa da Índia aborígene; e Shakti, a força cósmica, que é colocada como a Mãe Divina que sustenta o universo.
Pois no tantrismo toda mulher encarna o mistério da Criação, o mistério do Ser; encarna tudo aquilo que é, encarna tudo aquilo que se torna, tudo aquilo que morre e renasce. O espírito, o macho, é o contemplativo, “o grande impotente”, nas palavras de Mircea Eliade. É purusha, o imóvel; é a prakriti que trabalha, gera e alimenta. E jamais se pode esquecer esse lugar de destaque de Shakti, da Mulher, da Mãe Divina no tantrismo. E o tantrismo, devido ao fato do homem contemporâneo estar imerso na ”carne”, é o Grande caminho que pode verdadeiramente transformar esse ferro bruto em ouro.
Porque o homem da idade das trevas (a nossa), já não mais possui a espiritualidade em sua forma plena; e assim não mais consegue chegar diretamente a Verdade. Então, através do Tantra, ele parte das experiências básicas, fundamentais, aquelas que embasam, as relacionadas com as fontes primárias da vida – a criação e a destruição, a vida e a morte – para buscar o caminho de volta... a ele mesmo. É por causa disso que os ritos vivos possuem um importante peso no tantrismo. E por isso é que o coração, a sexualidade e a morte no Tantra servem de veículo para se atingir a transcendência.
Outra característica importante dentro do tantrismo é a sua atitude anti-ascética, anti-especulativa. Não no sentido de se negar um determinado caminho de forma arbitrária e prepotente, mas no sentido de mostrar que o “Rei está nu”- literalmente. No Kulanirvana-Tantra encontramos: ”Os asnos e os outros animais também vagam nus. São por isso yoguis?”. Uma crítica direta aos ascetas que se posicionam contra o mundo e vagam nus buscando a transcendência. Assim como a tradição tântrica Sahajiya que questiona: “para que a meditação? Apesar dela morre-se no sofrimento. Abandone todas as práticas complicadas e a esperança de obter as siddhi (poderes) e aceite o Sünya (Vazio) como sua verdadeira natureza”.
Mas apesar dessas “críticas”, o tântrico utiliza também várias técnicas meditativas; e o objetivo das “alfinetadas” em outras tradições é fazer com que o buscador não transforme a ponte que cruza o rio em uma morada. O objetivo é questionar, agir, colocar à prova tudo aquilo que nos cerca. Pedra que rola não cria musgo. E por isso mesmo que o Tantra sempre foi tido como algo pecaminoso pelas outras escolas. Por muitas vezes bancar o advogado do diabo o Tantra foi confundido com o mesmo.
Externamente o Tantra pode até parecer um caminho fácil, onde o vinho e a carne, os prazeres da vida, enfim, onde tudo aquilo que para outras escolas é proibido, torna-se liberado. No Guhyasamaja-Tantra encontramos que a luxúria é permitida; é permitido comer qualquer tipo de carne... até a humana. Pode-se mentir, roubar, cometer adultério... Nesse momento você pode estar se perguntando: que raio de caminho rumo a transcendência é esse que permite que tudo isso seja feito?
O ponto aqui é deixar claro que todos os contrários são ilusórios. O mal assim como o bem, o certo e o errado, tudo isso são criações da mente. Pois em última análise existe somente o Vazio absoluto. Nada, em nosso mundo fenomênico, possui realidade em si mesmo. Contudo, não devemos nos confundir. Quando o tantrismo afirma que pode-se fazer determinadas ações não está querendo dizer que deve-se fazê-las. E nesse ponto que surge a necessidade de um mestre qualificado. E justamente nesse ponto é onde muitos discípulos se perdem no caminho e se desvirtuam, podendo até enlouquecer. É por isso que o Tantra é também conhecido como o caminho do herói. Pois quando os textos afirmam que qualquer coisa pode ser feita, eles se referem aos seres realizados, aos mahasidhas, aos Budas, àqueles que realizaram o Vazio. E esses seres não fazem qualquer coisa mas aquilo o que deve ser feito.
Dentro do Budismo Tântrico encontramos um ótimo sistema de segurança contra esse tipo de mal entendido: a compaixão. De nada adianta você ser vegetariano, acumular poderes, conhecimentos, etc, se você não possuir o básico – a compaixão. Essa compaixão pode ser compreendida como uma forma altíssima de inteligência. Onde a mente e o coração tornam-se um. Essa compaixão relaciona-se com a tolerância, esse estado mental forte e corajoso que não nos envolve em ocorrências desequilibradoras que podem vir a acontecer em nossa vida. Na compaixão percebe-se de forma clara e direta e interconexão entre o eu e o você, entre o macrocósmico e o microcósmico. Essa compaixão também relaciona-se com o desapego, que podemos ver como uma não-fixação no aspecto ilusório dos fenômenos - uma conexão com o vazio. De forma que compaixão, tolerância e desapego tratam-se então de percepções para se "acordar" da nossa visão de mundo limitada e condicionada.
E você também pode comer qualquer tipo de carne, até a humana. Pode-se mentir, roubar, cometer adultério, ou o que for, mas depois de perceber esse Vazio absoluto. Entretanto depois de percebê-lo você talvez não necessitará realizar nada disso... justamente por haver realizado a natureza dessa mente; justamente por ter compreendido completamente que todos os contrários são ilusórios.
Mas sem um mestre qualificado, pode-se utilizar essa “facilidade” do caminho tântrico para se justificar qualquer coisa. É justamente essa armadilha - acho particularmente que é uma armadilha do próprio Tantra enquanto “entidade” que existe para separar o joio do trigo - que desencadeou excessos dentro do Tantra. Muitos desejam o conhecimento mas poucos se mostram verdadeiramente qualificados.
Contudo, o ideal básico do Tantra num nível sutil é a reunião dos dois princípios psicocósmicos e a percepção dos mesmos em si pelo discípulo. É a reunião de Shiva e Shakti. Porque o tantrismo é uma prática, uma ação, uma realização. E para isso é necessário que os opostos se quebrem, é necessário que as correntes da mente ordinária sejam arrebentadas. E justamente por causa disso tudo é que existe a importância capital da figura do mestre, do lama, no caminho tântrico.