lundi 9 juillet 2007

Trinta e seis



Está servido?
Algumas pessoas podem opinar que essa necessidade do numinoso que dizemos estar presente no homem não passaria de uma teoria, como tantas outras. Elas poderiam reforçar suas opiniões se remetendo ao passado do homem e mostrando que a necessidade de dar sentido a toda uma natureza, até então incompreendida, gerou uma urgência de se "inventar" um poder externo, na maioria dos casos de caráter antropomórfico, para encaixar essa peça no espaço que estava faltando desse quebra cabeça.
Elas poderiam continuar a sua argumentação e dizer que posteriormente quando o homem já tivesse conseguido compreender e explicar o mundo a sua volta, essa peça de quebra cabeça havia se tornado então desnecessária, de certa forma até mesmo nociva para o livre pensar e o avanço dessa nova maneira de se ver o mundo: a ciência.
Diriam que o homem então começaria a sondar a matéria e o espaço para aferir seus componentes básicos, suas leis gerais, suas formações, seus códigos. E que a partir disso muitos dos problemas da humanidade haveriam de ser resolvidos pela ciência. E que uma série de medos, preconceitos e desconfianças que aquela antiga peça de quebra cabeças havia gerado iria começar a se dissolver na medida que o homem tornar-se-ia racional.
Mas embora essa argumentação seja até certo ponto válida e lógica, uma pergunta deveria ser feita: seria o homem contemporâneo feliz? Sabendo da fragilidade da pergunta e da imensa relatividade que pode haver no conceito de felicidade (embora para mim felicidade seja algo óbvio), eu reformularia a questão. E proporia uma nova perspectiva, afirmaria que essa numinosidade poderia ser também compreendida como uma necessidade de se entender. Entender, questionar, perguntar, uma característica da inteligência - talvez possamos colocar assim.
A forma de se chegar a essa resposta pode variar; um tipo de homem pode tentar entender e descobrir como se dá o voar, como "navegar" em baixo d'água, como chegar de um ponto ao outro num menor tempo possível, como obter a luz do sol à noite, como curar doenças físicas, e assim por diante; outro tipo pode tentar entender todos esses fenômenos a partir de si mesmo, ou melhor dizendo, pode tentar compreender como é que a percepção entra em contato com esses fenômenos e o que acontece a partir daí. Pode tentar estabelecer como se dá a interação entre o lado de fora e o de dentro, e assim sucessivamente; também existiria um terceiro tipo que jogaria a responsabilidade dessas duas possibilidades em algum poder externo e ponto final.
O Tantra é uma possibilidade dessa pessoa que não "acredita" no divino vir a mudar de opinião. Mas não a partir de mais uma argumentação mais lógica e tal, não; é uma possibilidade dessa pessoa vir a mudar de opinião a partir de si mesma. A partir de uma série de percepções que ela teria, se desejasse entrar por essa porta.
Em princípio, ela poderia continuar com argumentações do tipo, "a possibilidade de o gênero humano ser especial é simplesmente absurda". Pois dentro do universo a raça humana não passaria de poeira cósmica. O universo é então um extensão que vai além da capacidade de imaginação e não há nenhum tipo de preferência nele. Essa vastidão não prestaria atenção em nada. Pois ele se destrói, se cria, se transforma independente da humanidade. Faz isso muito antes da humanidade aparecer e continuará fazendo depois que a humanidade se for. Por fim ela diria que para a vida ter significado nos criamos um para ela.
Embora a suposição de que a consciência humana e o Todo existe unicamente a partir de interação ocasional, fruto de um "acaso", foi comparado por Stanislav Grof como a montagem de um jumbo 747 a partir de um tornado passando através de um deposito de ferro-velho.
Pois bem, até certo ponto o Tantra concordaria com ela, concordaria que o ser humano até certo ponto cria significados; mas afirmaria que a possibilidade da percepção dessa numinosidade, que é paradoxal em si, também possui algumas "leis", assim como a ciência. Contudo, são leis de uma outra ordem. São leis que independem do tempo. Ou melhor, são leis que para "funcionar" necessitam desligar esse relógio psicológico. Por isso que dissemos acima que essa numinosidade, esse divino, era paradoxal em si.
Poderíamos criar a imagem dessas leis numinosas a partir do seguinte quadro: silêncio absoluto e vazio absoluto. Sim, alguém pode argumentar, ainda são imagens, criações. Mas temos de partir de algum dado mental e conceitual dentro dessa nossa existência psicológica e tridimensional - para posteriormente perceber a sua irrealidade. Contudo, o que é esse silêncio e esse vazio, somente a própria pessoa pode ver.
Descendo num nível mais humano, essa lei englobaria um sentimento de unidade entre todas as coisas; logo, a noção de um eu, ou a noção de egoísmo, e afins, cairia por terra. Novamente, alguém pode argumentar: ainda são imagens, criações. Outra vez diríamos que o que é essa noção de identidade total, somente a própria pessoa pode vislumbrar
E seria nesse ponto que essa pessoa que criou os argumentos iniciais - de que esse numinoso seria apenas mais uma teoria - talvez começasse a desejar não ir além. Poderia argumentar que isso é sofismo, que esse tipo de argumentação conduziria diretamente para onde o argumentador deseja colocar uma resposta. Por fim, talvez não houvesse disposição nessa pessoa para descobrir esse divino a partir dela mesma.
O interessante é que o tipo de mente que elabora essa questão é o tipo de mente que acha maravilhoso o conhecimento científico humano. Segue a mesma cartilha, a mesma fórmula, de Descartes até Newton. Esse tipo que não consegue perceber esse numinoso e questiona-o - de certa forma o faz com razão já que não consegue ter essa percepção - e encanta-se com a ciência e suas criações. Normalmente poderia ser enquadrado como uma pessoa pragmática e objetiva.
Pois bem, se pegarmos um exemplo de "maravilha" da ciência moderna - a fissão do átomo e a bomba - e analisássemos essa descoberta com essa pessoa, ela poderia argumentar que embora essa descoberta tenha desencadeado o perigo nuclear que pode inclusive riscar o homem da face da terra, a descoberta científica em si é maravilhosa. Pois certo, essa pessoa acha maravilhosa essa descoberta humana (e de certa forma é mesmo) mas considera que algo que seja constituído de milhões e milhões de explosões nucleares que se processam à milhões e milhões de anos, também conhecido como sol, seja apenas um corpo celeste. Uma "estrela". E que não há nada de maravilhoso nisso. É simplesmente um dado astronômico - essa pessoa diria. Por que será que isso se dá?
Porque é mais fácil comprar um conhecimento que já exista. É mais fácil incluir-se no senso comum, ou ter um Pai que cuida de mim, ou pertencer a um grupo privado de capacidade intelectual elevada que criou, mantêm e constrói um mundo, a partir de uma determinada explicação - mesmo que essa mesma leitura de mundo seja a responsável por seu desequilíbrio. É mais fácil, mais seguro. Psicologicamente, é mais cômodo.
É mais fácil a ciência afirmar que a matéria é o ponto final. Isso num nível social pode inclusive possibilitar várias formas de controle a partir de supostos saberes validados. Várias formas de engenharia social podem ser empregadas a partir dessa leitura seca do homem. Pois se o ser humano é uma máquina, uma peça, ele pode simplesmente ser substituído por outra, e pronto, o problema está resolvido.
Recentemente um grande empresário finalmente disse a palavra mágica que anima as engrenagens a partir desse século: "Qualidade de vida é bobagem." Poderíamos dissecar essa afirmação e encontrar: qualidade é bobagem, vida é bobagem, qualidade é. Qualidade enquanto lucro é a nova senha. Lucro é a qualidade. Qualquer coisa fora disso está sendo considerado bobagem. E nesse ponto o Tantra pergunta: em que tipo de realidade a sua vida flui?
E se cada vez mais esse tipo de leitura de mundo ganha espaço é porque cada vez mais as pessoas não conseguem realmente perceber o que vem a ser o divino, o numinoso. Um pequeno grupo ao transformar-se já poderia causar um boa, e bem vinda, confusão. E sabendo disso as engrenagens apertam cada vez mais o passo, secam cada vez mais o rio, pois perceberam que foram nos momentos de estabilidade econômica - isso em nossa contemporaniedade - que mais perguntas foram feitas. É a velha questão: uma pessoa feliz não se submete a qualquer coisa.
Mesmo na secular Índia, a mãe de grandes conhecimentos sagrados, nos dias de hoje, encontramos essa máquina funcionando a toda velocidade como afirma a escritora Arundhati Roy, "Como é que a maioria da população indiana que luta diariamente pelas coisa básicas, mais simples da sobrevivência como alimentação e água potável vai protestar contra o governo? Há muita gente na Índia que concorda com tudo por um motivo horrível - apenas a capacidade de saber ler e escrever é um privilégio enorme".
E quando afirmamos que o Tantra é subversivo, atemporal e atopográfico é nesse sentido. Pois a "revolução" tântrica é interna. É a única revolução possível. É a única que pode vir a dar resultados. Foi no paradoxo do ame seu semelhante de Jesus, O Cristo, que as pessoas ficaram sem ar. Que o tempo lhes foi tirado. "Como assim amar meu inimigo? Meu inimigo deve ser morto!". Foi nessa subversão onde o numinoso se encontrava. Através de Jesus, de Buda, de Mahavira e de tantos outros mestres, que essa subversão - que alguns também chamam de amor - paralisou o tempo de suas épocas.
E para começar a desmontar o relógio contemporâneo o Tantra solicita: não tente controlar nada, mas perceba; não creia em nada, mas seja; não tenha teorias. Em grego as palavras teoria e teatro possuem o mesmo significado. E isso é muito significativo. Pois ao representar, estamos agindo a partir do tempo, mas quando somos, ele - o tempo - é eliminado. E já que pensamos porque existimos, é inútil querer utilizar o pensamento para compreender as origens de nossa própria existência.
Entretanto o Tantra pode ser considerado atopográfico ou atemporal porque mesmo uma pessoa que nunca ouvisse falar sobre ele, ou sobre chakra, kundalini e isso tudo, poderia realizá-lo. É claro que não o chamaria de "Tantra" nem tão pouco realizaria-se como um "tântrico".
Imediatamente podem aparecer questões cruciais tais como: as teorias e o conhecimento são necessários para que vivamos no mundo. Sim, mas não para que vivamos nas teorias e no conhecimento. Porque a teoria anula a percepção do que está realmente ocorrendo. Acontece um fato e você imediatamente recorre aos seus dados para, a partir de então, perceber esse fato. Mas aí o fato já terá mudado. Pois a teoria não é nada mais do que uma perspectiva, um modo de olhar, e a partir desse ponto, "uma" forma de agir.
Se eu tenho x anos de condicionamento, de desejos, de medos, o mundo a minha frente tem de ser controlado, a matéria tem de ser morta, pois se isso não acontecer, se eu não processasse minhas percepções a partir de um ponto no passado, tudo poderia se transformar num caos, tudo seria monstruoso... ou divino. Pois se com esses x anos eu desejar realmente perceber o divino, tenho que em primeiro lugar, perceber o blefe que é a minha preciosa noção de segurança, o blefe que é a minha preciosa herança da razão.
Mas podemos nos livrar desse passado? O Tantra diz que sim. Mas o que está em jogo não é aquele conhecimento do passado onde eu percebo uma forma a ser utilizada para que eu consiga arrumar o meu cadarço. Não é esse o ponto em jogo. E sim o ponto que me condiciona a amarrar esse cadarço somente de uma determinada maneira porque essa é a correta maneira de fazê-lo, por exemplo.
Pois inclusive esse passado em si não existe mais. Tem vida apenas como uma construção psicológica onde uma série de energias estão conectadas com imagens mentais que chamamos de lembranças... ou condicionamentos. É bem lógica a questão pois o nome diz tudo, passado. Acabou. Foi-se.
Mas a armadilha está camuflada. Pois no momento que se transforma isso em teoria, em padrão, caímos no tempo novamente. Por isso que "discípulo" pode ser a coisa mais destruidora que existe - no mau sentido. Pois a tendência é literalizar, e viver a partir de, de fazer o que o mestre mandou. E isso é morte. Isso é extremamente danoso. É por essa causa que a maioria das escolas de mistérios podem ser armadilhas. Pois são "mantidas", na maioria, por discípulos.
Buda deu a dica ao afirmar que o homem vive em sofrimento e continuou a iluminar ao completar que esse sofrimento somente pode ser erradicado pelo próprio homem. E esse sofrimento é a ignorância. É viver a partir do tempo, a partir de teorias, a partir de um teatro onde o roteiro da peça que é a nossa vida foi escrito por outros. Tales de Mileto, o fundador da filosofia ocidental segundo Aristóteles, ao ser questionado sobre o que era mais difícil no mundo, respondeu, "Conhecer a si mesmo", e quando lhe perguntaram o que era mais fácil, respondeu, "Dar conselhos".
Mas normalmente pegamos isso tudo, todas as grandes percepções, e achamos que "devemos procurar a felicidade". Novamente, talvez esse não seja o ponto. Pois não se trata de mais uma forma de gratificação que age a partir do tempo. Tenho de perceber que sou a felicidade, mas tenho de começar (olha as palavras traindo o processo, pois começar envolve... tempo), tenho que dar início a esse fluxo percebendo que agora sou infeliz, ignorante, maluco, viado ou o que for.
Então tragamos o ponto inicial que foi questionado, do universo que não se sensibiliza com a existência, ou não, da espécie humana. E que a partir daí podemos negar a noção do divino.
Bem, se pegarmos a noção vigente da cosmologia de que o universo se expande a partir de uma grande explosão (o big bang) - embora existam outras teorias que sustentam que ele sempre existiu através de uma eterna expansão e retração - se pegarmos isso e traduzirmos essa expansão como uma espécie de "ordem", que essa expansão, que esse movimento é uma ordem, (contudo é uma ordem que não se baseia no tempo pois a expansão desse universo não se baseia nele), e se no lado de "cá" tivermos o homem e seu cérebro físico e sua mente (cérebro físico que passou por uma série de maturações e uma consciencia que em principio sempre existiu), poderemos concluir que tanto esse universo, esse cosmos, essa ordem, tanto essa mente básica, não estão limitados ao tempo e ao espaço - pois são a mesma coisa.
Nós somos esse universo. O equívoco é: a pergunta parte de uma leitura dualista - universo e humanidade. Assim como falamos o planeta terra e a raça humana. Contudo, a humanidade é o universo e a raça humana é o planeta terra.
É uma simples questão de perspectiva. Uma análise a partir do tempo: 1 - existe a raça humana, 2 - existe "lá fora" o universo, 3 - o universo não se importa com a raça humana... e assim por diante. Mas se eliminarmos esse tempo... respire fundo... podemos fazer a conexão.
O universo nos respira.