lundi 9 juillet 2007


30. Sentar
Parafraseando uma das grandes mestras do Budismo tântrico, Pema Chöndrön, os ensinamentos do Tantra são dirigidos às pessoas que não têm muito tempo a perder. Entretanto dizíamos no início do capítulo que nossa realidade é moldada pelo tom da sociedade que pertencemos. E na medida em que essa realidade é uma convenção validada pela maioria, mas em si mesma arbitrária, uma leitura de mundo que não se enquadre nessa construção pode representar um modo de ser impróprio e anti-social. E nessa sociedade o valioso não repousa no ser mas no ter.
Então de certa maneira esse convencional serve para nos impedir de percebemos o essencial. E até percebermos quem somos realmente não conseguiremos acordar para o que deveríamos ser. Dentro do Budismo tântrico existe o conceito dos quatro Maras, esses quatro maras são os pontos que reforçam essa impossibilidade para percebermos esse fato básico, esse dado direto, esse fator essencial, esse infinito atual.
O primeiro é devaputra mara e relaciona-se com o prazer; o segundo é skandha mara e relaciona-se com o jeito que aparentemente tentamos ser para nos mesmos; o terceiro é klesha mara e relaciona-se com a maneira que permanecemos dormindo graças as nossas emoções; o quarto é yama mara e relaciona-se com o medo da morte.
Devaputra mara relaciona-se com o prazer. Funciona como uma espécie de compensação. Nos sentimos mal e logo queremos colo, comemos chocolate, saímos para nos "divertir", saímos para "distrair" um pouco, enfim, logo armamos uma série de estratégias para driblar esse estado, ao invés de nos depararmos diretamente com ele. Sempre tendemos a procurar essa segurança - pois temos a ilusão de que ela existe. E estamos condicionados a não entrar em contato com o real, pois ás vezes a realidade convencional pode se mostrar muito amarga. Mas as fantasias que criamos em tornos de nós e do mundo podem não combinar entre si - o que gera mais confusão ainda. Contudo o que fazemos a respeito? Assim como a imagem cômica do avestruz que enfia a cabeça na terra para "fugir" de um predador, nos escondemos atrás de drogas, entretenimento barato, comida ruim, sexo ruim ou alguma coisa parecida. Podemos até utilizar algum caminho iniciático para se esconder desses problemas. Ou alguma religião.
"Entretanto, não precisamos considerar a busca do prazer como um obstáculo. Ao contrário, tentar obter prazer é uma oportunidade para observar o que fazemos diante da dor. Em vez de fugir, evitando sentir-se desconfortável e descentralizado, podemos começar a abrir o coração para o dilema humano que causa tanto sofrimento nesse mundo" - ensina Pema Chöndrön.
Skandha mara é como reagirmos quando caímos do cavalo. Perdemos toda segurança que havíamos criado e damos de cara com a parede invisível de uma estranha realidade. O tiro nos atinge na cabeça e caímos, mas logo em seguida levantamos a partir de um outro script, utilizando uma nova persona. A conexão foi encerrada, a linha caiu, mas voltamos a nos conectar utilizando uma nova senha e adotamos um novo nickname. Nos recriamos então para permanecermos o mesmo. Na mesma roda. Tal qual Ixion amarrado nessa roda ardente que gira sem cessar. O mundo inteiro acaba, e ao invés de percebermos isso como um grande presente, como uma grande dádiva para entrar nesse explodir e ser, nos rearrumamos novamente. Criamos novamente um padrão. Quando o livro está em seu final, fechamos esse e pegamos outro; porque no livro anterior estávamos no capítulo onde o mocinho da história morria e ficamos tão desesperados com isso, com o fato de não saber o que iríamos encontrar nos próximos parágrafos, que resolvemos pegar um outro livro, um livro cômico dessa vez... mesmo que aparentemente.
Todavia poderíamos aproveitar o tombo do cavalo para percebermos que não existe chão. Poderíamos ficar atentos e perceber o próximo capítulo da estória. Ficar ligados para o fato de não haver motivo para pegar um outro livro, e mais outro, mais outro, sempre que a estória que estivéssemos lendo começasse a ficar estranha, sombria, complicada, sem controle. E ao invés de tentar rearrumar essa realidade poderíamos perceber a sua essência - que é a mente básica de sabedoria.
Fortes emoções são as características do klesha mara. Um sentimento específico aparece e entramos em desespero. Começamos então a trabalhar num roteiro fantasma para justificá-lo e desdobramos ele em alguma coisa mais poderosa - e ficamos mais desesperados! Ao invés de simplesmente sentar e ver as nuvens dessa tempestade se formarem, começamos a imaginar os estragos que a chuva que vem irá causar... talvez a chuva nem caia. Talvez essas nuvens negras se dissipem e o céu se desanuvie.
Mas preferimos fazer o inverso, preferimos pensar que talvez nunca mais pare de chover. E usamos nossas emoções - que em si apenas nos mostram que estamos aqui - e criamos mais fantasias aterrorizantes sobre o que nem pode vir a existir. Novamente, se utilizarmos esse circo dos horrores que nós criamos em nossa mente para darmos uma boa risada de nós mesmo, escaparemos e cairemos num lugar estranho e desconhecido, mas que pode ser o esboço de nossa essência, o esboço da grande irrealidade que somos nós.
Pema Chöndrön afirma que todos os maras são decorrentes do medo da morte. E Yama mara é a sua manifestação. A sua raiz básica. Um bom modelo de felicidade, por exemplo, é aquela situação dentro dos limites da roda onde todas as coisas estão em seu lugar. Nossa casa está toda arrumadinha. O tapete está limpo, o banheiro foi lavado assim como a cozinha, o lixo foi levado para fora, a comida do gato foi trocada e a louça foi lavada e guardada. Tudo cheira a limpeza e sentimo-nos bem. Contudo podemos acordar e perceber que tudo isso não passa de um sonho. Podemos despertar num lugar totalmente desconhecido e estranho. E o que fazemos?
Morrer para o Tantra é agarrar-se no nosso mundo conhecido e seguro. É continuar a alimentar nosso eu com o falso senso de segurança de que tudo está bem. Nada pode estar nem bem, nem ruim, porque as coisas não estão. E se congelarmos a vida estaremos matando-a . Se quisermos o tempo todo espanar a poeira que somos nós, estaremos criando um ambiente insípido e morto. Porque o singular é o geral estraçalhado que se cria continuamente.
E assim Yama mara não é o medo da morte mas o medo da vida. Ser é manter-se em equilíbrio constante em meio ao caos e a fúria, que possuem sim um sentido. Desejamos que tudo seja limpo, desejamos a total perfeição búdica, mas nos deparamos com nossas fantasias de grandeza, com nossos medos, com nosso egoísmos, com nossa infelicidade...o Tantra solicita que comecemos com isso. Comecemos percebendo o quanto somos fracos, confusos e iludidos. Fiquemos com aquilo que percebemos, que sentimos, o que estivermos sentindo, permaneçamos nesse ponto, sem medo, como verdadeiros heróis, como verdadeiras heroínas, e a partir desse ponto começaremos a perceber a Verdade.